Folha de S. Paulo


Capitalização da frase "Je Suis Charlie" por meio de produtos causa polêmica

Novo ano, nova tragédia —nova moda?

O que mais pensar sobre a onda de produtos "Je Suis Charlie" (Eu Sou Charlie) que está inundando a web, de camisetas a aventais, de braceletes a buttons a agasalhos?

Ela começou imediatamente depois do massacre no jornal "Charlie Hebdo"; ganhou força no Globo de Ouro, quando Amal Clooney enfeitou seu vestido Dior preto e luvas com um button "Je Suis Charlie" em preto e branco; e chegou a sites de compras da internet.

Há produtos com a frase Je Suis Charlie à venda no Etsy (sete páginas deles, de braceletes a pingentes), Amazon, Spreadshirt (camisetas 34-T, agasalhos e canecas), e Zazzle. A edição francesa da revista "Elle" colocou "Je Suis Charlie" em sua mais recente capa.

E imediatamente depois veio a reação negativa, no Twitter e em outras mídias.

Michele Acquarone, @micacquarone, em 14 de janeiro: "Li sobre os produtos Je Suis Charlie que estão à venda. A cobiça humana é infinita".

Emily Peacock, @EmilyJPeacock, 9 de janeiro: "Decepcionada por pessoas terem lançado produtos @jesuischarlie. Não é um mercado, afinal".

"Charlie" postou em francês em um blog da Spreadshirt em 14 de janeiro. A tradução seria: "Você não é Charlie, você é uma loja de camisetas, você mudou de lado, está tentando ganhar prestígio, isso é só marketing, vocês são repulsivos".

Os envolvidos que responderam disseram ter sido motivados pela solidariedade e não pelo lucro. Um post no blog da Spreadshirt em resposta ao comentário acima dizia que "nenhum dos produtos ou designs 'eu sou Charlie' em nossas lojas parceiras, mercado ou em mercados externos oferece uma comissão que de alguma forma faria com que essa tragédia nos propiciasse lucro. Além disso, a Spreadshirt recusará comissão sobre a venda de qualquer produto 'eu sou Charlie'".

A companhia acrescentou que doaria todos os lucros de produtos "jesuischarlie" ou "charliehebdo" à fundação oficial de apoio ao "Charlie Hebdo" e às famílias das vítimas do ataque.

Mas, quando existem produtos envolvidos, não há como escapar à mácula do comercialismo e à suspeita de que talvez alguém esteja tentando lucrar com o sofrimento alheio. Afinal, na Spreadshirt e Dazzle, os produtos estão classificados sob a rubrica "presentes Je suis Charlie", e não sob "declarações de solidariedade Je suis Charlie". (Na Amazon, em contraste, alguns dos itens estão classificados como "camisetas de protesto Je suis Charlie".) Presentes? Mesmo?

Esse tipo de incongruência não se limita ao mais recente ataque.

Considere o atentado contra a Maratona de Boston. Produtos relacionados ao incidente começaram a ser vendidos no eBay logo depois do acontecido, causando grande horror (o eBay terminou por retirar a maioria deles de suas listas).

E o surto de ebola: continua a ser possível encontrar camisetas, abotoaduras, brincos e bugigangas semelhantes online - bem como comentários negativos ("produtos bem doentios", foi a piada da "AdWeek").
A crise policial de Ferguson? Mesma coisa.

De fato, esse último caso oferece um exemplo clássico sobre a complexidade da questão.

No ano passado, quando irromperam distúrbios depois da decisão de um júri de instrução de não indiciar o policial que matou Michael Brown a tiros em Ferguson, Kerby Jean-Raymond, 28, estilista e fundador da grife Pyer Moss, de Nova York, criou uma camiseta no estilo japonês clássico da grife, em viscose, personalizada com os nomes de diferentes vítimas de agressão pela polícia.

Ele foi com a camiseta ao seu desfile na Fashion Week de Nova York, em setembro. Algumas das fotos começaram a circular na Internet, e não demorou para que ele começasse a receber múltiplos e-mails perguntando onde comprar a camiseta.

"Hesitei por três meses" sobre produzir a camiseta, disse Jean-Raymond, que cresceu na região de East Flatbush, em Brooklyn, como filho de uma família haitiana. Ele lembra de ter ouvido falar sobre o ataque a Abner Louima (que aconteceu em seu bairro) quando era criança.

"Fiquei surpreso por ousar levar a ideia adiante", ele disse. "Os amigos me disseram para não fazê-lo porque haveria pessoas que me criticariam por ganhar dinheiro à custa dos outros. Mas depois pensei que a escolha era entre fazer aquilo ou fazer nada. E fazer nada seria pior. Por isso decidimos produzir as camisetas, para arrecadar dinheiro e promover a conscientização".

Uma edição limitada de mil camisetas foi produzida; toda a receita das primeiras 250, vendidas por US$ 70 a peça, irá direto para a União Americana pelas Liberdades Civis (ACLU), uma organização de defesa dos direitos civis, "porque eles trabalham para todo tipo de causa e contra a injustiça", disse Jean-Raymond.

O lucro das demais peças será doado. O custo da camiseta para a empresa é de US$ 32 (R$ 83). Ele espera arrecadar entre US$ 20 mil (R$ 51 mil) e US$ 30 mil(R$ 77 mil) para a organização.

"Mas não há como vencer nesses casos", ele disse. "Sei que não importa o quanto sejamos transparentes sobre a destinação do dinheiro, as pessoas dirão que estou explorando a causa".

Cleusa Turra/Folhapress
Mulher segura cartaz onde se lê
Mulher segura cartaz onde se lê "je suis Charlie" (eu sou charlie), em Paris.

O que está em jogo é a tensão entre o desejo humano básico de demonstrar adesão a uma causa ao, literalmente vesti-la, e a oportunidade igualmente pública de julgar e condenar.

A tendência de vestir uma causa é facilitada pela atual propensão a produtos personalizados, propelida pela facilidade de criação e disseminação que a Web oferece, e pela atual moda de viver em público a vida privada.

Mas embora seja fácil culpar os produtores desses itens pelo nosso desconforto diante da comercialização de uma causa, isso representa uma fuga da responsabilidade -e por parte de todos. Os consumidores que procuram esses produtos e os compram é que propelem as atividades nesse nicho específico de mercado.

A moda reflete o mundo, em todos os seus medos e manias, e temos diante de nós um caso clássico de oferta e procura: sem procura, a oferta desapareceria.

Isso não vale dizer que entre os vendedores não existam aqueles que estão simplesmente aproveitando o momento e explorando a questão para lucrar.

Mas o poder de decidir o que é certo e o que é errado cabe em última análise ao comprador. Cada um precisa resolver essa questão por conta própria.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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