Folha de S. Paulo


Ex-inimigos se unem em reintegração de combatentes na Colômbia; assista

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Quem quer dinheiro?

John William, 40, definitivamente queria. E a "grana" estava na AUC (Autodefesas Unidas da Colômbia), principal força paramilitar do país.

"Você ganha salário mínimo ou está sem trabalho. Eles te oferecem 1,5 milhão de pesos [R$ 1.650]. E aí? Você vai?"

John foi. Sabas Duque, 46, também, mas para o outro lado. Ele, que sentia "muito amor pelas armas", selou compromisso unindo-se às Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia).

Que escolha tinha? "Cresci numa região onde o Estado não era presente e a autoridade eram as Farc", diz.

Andres, 22, foi outro a ir. Só que à força. Das duas, uma, disseram os guerrilheiros da ELN (Exército de Libertação Nacional) a seus pais: ou pagavam ou o filho de dez anos viraria um soldado deles.

Em questão de meses, Andres viu "os ossos pularem para fora" quando uma bala atravessou o crânio de um amigo, no primeiro combate dos dois, e foi obrigado a "justiçar" um sequestrado. "Era a minha vida ou a dele", diz. "Nunca mais fui criança."

No começo do século, juntar John, Sabas e Andres seria tão razoável quanto convidar milicianos, Comando Vermelho e Terceiro Comando para a mesma festa.

O trio, contudo, deixou as armas e a rixa para trás. A luta que travam, agora, é para serem aceitos por uma sociedade traumatizada por décadas de conflito armado –com rifles empunhados por eles.

"Somos vítimas e vitimadores", diz Sabas, na cadeira de rodas desde 2001, após um de seis tiros disparados por paramilitares lhe atingir a coluna. Uma bala na cabeça tirou 50% de sua audição.

Como os três, há 57 mil ex-combatentes que voltaram à legalidade com ajuda da ACR (Agência Colombiana de Reintegração). Desde 2003, a entidade federal aceita desertores à esquerda e à direita.

"Soldados rasos", diz o diretor da agência, Joshua Ventura. "Sem poder de decisão."

No programa, os ex-inimigos moram juntos, recebem auxílio financeiro e psicológico e fazem cursos técnicos ao estilo Pronatec. Alguns ingressam em universidades.

O processo todo dura anos e culmina com serviços comunitários e um cara a cara com vítimas (diretas ou não).

Nem todos lidam bem.

O ex-paramilitar John pega ônibus onde, no banco da frente, falam mal da iniciativa. "Faz você pensar que jamais poderá contar ao seu vizinho", pondera numa das sedes da ACR –um sobrado branco onde aniversariantes do mês são lembrados num pôster da Turma da Mônica.

"E se o nazista que matou o bebê da vizinha judia dissesse 'pô, foi mal'? Hitler deu a ordem, não apertou o gatilho", compara o bancário Eder Santos, 47, vestindo uma polo com Che Guevara dentro do sinal de "proibido".

"Esses terroristas não servem nem para fritar meu Big Mac", completa, antes de se perder entre centenas de pessoas que fecharam uma avenida da capital num sábado chuvoso de dezembro.

Aos gritos de "fora, comunistas, terroristas!", os manifestantes pediam "paz sem impunidade". A ex-candidata ao Senado Margarita Restrepo, 62, engrossava o coro.

"Em 2000, a guerrilha não me permitia estar na Colômbia. Queria sequestrar meus filhos. Somos 45 milhões de vítimas, mesmo se não nos tocaram diretamente", diz, enrolada na bandeira do país.

ESPIRAL

A meta, segundo o diretor da ACR, é enquadrar o "círculo da violência". Sobretudo nas zonas rurais, onde os alistamentos são mais comuns e a criança recrutada hoje vira o algoz de amanhã. "O conflito pune os mais pobres, vulneráveis, sem acesso a saúde e educação."

Veja o caso de John: ele tomava cerveja sob um limoeiro quando soube que quatro guerrilheiros das Farc o procuravam. Crê ter sido confundido com um paramilitar. "Naquele momento, eu não tinha nada a ver com eles."

Isso mudou rapidamente. Com as Autodefesas, encontrou proteção e "grana, muita grana". Virou uma espécie de "gerentão", responsável pelo carregamento de fuzis e por contatos com autoridades, policiais e hospitais.

Sabas exercia função parecida nas Farc. Deixou a distribuidora de alimentos para virar braço direito do comandante. Era a ponte com o prefeito da cidade, que pagava "pedágio" à guerrilha. Já multinacionais "levavam a cota anual todo dezembro".

John e Sabas já completaram seu processo de reintegração e trabalham ajudando novos desmobilizados, como o jovem Andres, que sonha em ser chef de cozinha "ou, quem sabe, presidente".

"O prefeito de Bogotá [Gustavo Petro] foi guerrilheiro. Presidentes de Uruguai e Brasil também. Muitas pessoas tentaram chegar ao poder pela luta armada, mas conseguiram pela via democrática", diz Sabas. "Por que as Farc não veem esse exemplo?"


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