Folha de S. Paulo


Europa teme jihadistas locais treinados no Oriente Médio

Extremistas domésticos treinados na Síria, Iraque e Iêmen se tornaram a grande ameaça terrorista no mundo. Segundo especialistas ouvidos pela Folha, devem se multiplicar nos próximos meses os ataques perpetrados por indivíduos que são treinados nessas nações e voltam para seus países de origem para cumprir suas "missões".

Na mira, cada vez mais, os "soft targets" (termo militar que se refere a alvos civis e sem proteção armada que devem ser destruídos) como os atingidos recentemente: a redação do jornal satírico "Charlie Hebdo", o café em Sidney, na Austrália, o Museu Judaico em Bruxelas.

Autoridades da União Europeia estimam que cerca de 3 mil cidadãos europeus e 100 americanos foram para a Síria para se unir a jihadistas. Só da França, foram 1200. "Houve um grande aumento no número de jovens muçulmanos europeus que, sentindo-se frustrados ou marginalizados, vão para o exterior para ser treinados e receber recursos de grupos como Al Qaeda e Estado Islâmico, e voltam para cometer atentados em seus próprios países", disse à Folha Victor Asal, co-diretor do projeto sobre conflitos violentos da universidade estadual de Nova York em Albany.

Antes dos atentados de 11 de setembro, ele explica, o terrorismo era focado principalmente em alvos no Oriente Médio. Depois dos ataques em Nova York, houve um aumento nos atentados em países fora do Oriente Médio.

Mas a maioria dos ataques, como os de Madri, eram cometidos por estrangeiros. Nos últimos quatro anos é que cresceu a atuação dos militantes domésticos.

Um dos autores do ataque ao Charlie Hebdo, Chérif Kouachi, 32, era filho de imigrantes argelinos e nasceu em Paris. Cresceu em um orfanato e virou entregador de pizza. Foi preso em 2008 acusado de participar de uma rede enviando jihadistas para combater no Iraque. Na prisão, ele conheceu Djamel Beghal, recrutador de Osama bin Laden, então líder da Al Qaeda. Beghal se tornou mentor de Chérif e de seu irmão, Said, outro autor do atentado.

Em 2011, Said passou várias semanas no Iêmen, provavelmente em um campo da Al Qaeda da Península Arábica. O francês Mehdi Nemmouche, que matou dois turistas israelenses no Museu Judaico em Bruxelas, passou um ano na Síria.

"O ataque na França torna mais urgente a necessidade de uma solução para os conflitos na Síria e Iêmen, que se tornaram ímãs para a Al Qaeda e EI; a contenção do conflito sírio, estratégia do presidente Barack Obama, nitidamente não está funcionando", disse à Folha a libanesa Joyce Karam, colunista da Al-Arabiya.

A grande questão é como monitorar esses extremistas domésticos. O governo francês anunciou medidas para impedir a ida de franceses para campos de batalha de grupos radicais islâmicos no Oriente Médio. No fim de novembro, o Reino Unido aprovou legislação que proíbe universidades de sediarem palestras de extremistas e obriga escolas a reportarem islamistas que se radicalizarem.

Na França é um desafio particularmente enorme –são 7 milhões de muçulmanos e a grande maioria se sente marginalizada. Embora haja muitos muçulmanos incluídos na sociedade francesa, caso do policial Ahmed Merabet, que morreu no ataque ao Charlie Hebdo.

E lidar com os "soft targets" é outro obstáculo. "Não queremos ter um estado policial, em que todos os potenciais alvos são intensamente vigiados, pessoas são revistadas em supermercados", diz Asal. Segundo ele, isso seria terrivelmente invasivo e caro.

"É simplesmente impossível monitorar telefonemas e e-mails de milhões de muçulmanos", disse à Folha Michael Nacht, professor da Universidade da Califórnia em Berkeley e ex-secretário assistente de Defesa dos EUA (2009-2010). "Ainda mais agora, que a NSA teve sua capacidade de coletar e analisar dados prejudicada, após o escândalo de espionagem".

Para ele, falta coordenação entre os serviços de inteligência dos diversos países. "Um dos irmãos Kouachi, por exemplo, estava na 'no-fly list' dos EUA, por que os franceses não fizeram nada?". Autoridades mantiveram Chérif sob vigilância por um tempo, mas ai julgaram que ele não representava grande ameaça.

Segundo ele, seria indicado pelo menos monitorar de perto pessoas que passam temporadas no Iêmen, Síria e Iraque, por exemplo. "Não é que essas pessoas estejam indo de férias para o Rio ou a Riviera Francesa, eles estão indo para se radicalizar e, na volta, matar".

Mas é essencial que os governos não caiam, na armadilha da xenofobia, não apenas por causa do respeito á liberdades individuais, mas por necessidade operacional. "Nenhum pai francês quer que seu filho seja recrutado para lutar no Iêmen; mas se ele não confiar nas autoridades, talvez não procure ajuda se o filho estiver fazendo isso", diz Eli Berman, diretor do Instituto de Cooperação e Conflito Global da Universidade da Califórnia.

O pior é que, do ponto de vista dos jihadistas, o ataque ao "Charlie Hebdo" é uma inspiração.


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