Folha de S. Paulo


'Pedi ajuda a todos os santos', diz filho de brasileiro sequestrado no Paraguai

Nascido no Paraguai, filho de agricultores brasileiros, Arlan Fick, 17, foi sequestrado em abril dentro da fazenda de sua família pelos guerrilheiros do EPP (Exército do Povo Paraguaio), movimento dissidente de um grupo de esquerda.

Fick passou quase nove meses em cativeiro, mesmo após sua família ter pago um resgate de US$ 500 mil.

Ele foi libertado no dia de Natal.

Leia abaixo trechos de seu relato sobre o cativeiro.

*

O SEQUESTRO

Estava na minha cama à noite, assistindo à TV, quando ouvi uma pancada na porta do meu quarto que dá acesso à área externa. Primeiro, achei que tinha sido o vento. Mas as pancadas
continuaram, cada vez mais fortes, e vi que eles forçavam a porta para poder entrar.

Pulei da cama e comecei a gritar pelo meu pai, que veio com a espingarda 22. Eu disse que era ladrão, ele deu uns tiros para fora, mas vieram outros e entraram.

Corremos e nos trancamos no quarto dos meus pais. Eu, meu pai, minha mãe e uma sobrinha de 7 anos.

Quis ligar para a polícia, mas não tinha o número. Então comecei a ligar para meus cunhados e minhas irmãs.

Tenho três cunhados e três irmãs. Liguei para um cunhado, liguei para outro, liga para uma irmã. Só minha última irmã atendeu. Pedimos para ela chamar a polícia.

Percebemos que eles tinham invadido nossa casa, e então começaram a gritar "é EPP, é EPP, é EPP.".

A polícia estava a caminho, e só precisávamos resistir um pouco até ela chegar. Mas começaram a gritar que havia explosivos na janela e na porta e, se não saíssemos, explodiriam tudo. Saímos.

Fomos levados para a varanda e colocados de joelhos. Havia três ou quatro homens, todos eles de capuz. Me mandaram preparar roupas para ficar uns dias fora. Arrumando a mochila pensei: "estou lascado".

A polícia chegou e, com ela, a troca de tiros. Levaram nós quatro para os fundos da propriedade. Na cerca, minha mãe e minha sobrinha foram deixadas. Depois de darem orientações a meu pai, ele ficou, e me levaram mata dentro. A adrenalina estava a mil.

Ernesto Rodrigues/Folhapress
Arlan Fick, filho de brasileiros que vivem no Paraguai, dois dias após ser solto pelos sequestradores
Arlan Fick, filho de brasileiros que vivem no Paraguai, dois dias após ser solto pelos sequestradores

OLHOS VENDADOS

Logo nos primeiros passos, colocaram uma venda nos meus olhos, que ficou ali por quase nove meses. Foram 267 dias sem ver absolutamente nada, salvo algumas vezes em que me permitiram olhar o chão onde pisava para ajudá-los a andar mais rápido.

Mesmo sabendo que vivíamos na chamada "zona vermelha" do EPP, área em que mais atuam, nunca procurei saber suas causas, mas sabia de histórias de pessoas sequestradas e mortas por eles.

Isso me deixava preocupado. E também me preocupava sobre o que havia ocorrido em casa. Só fiquei sabendo agora da morte de três pessoas no tiroteio.

No primeiro ou segundo dia, tentaram me acalmar. Disseram que não me machucariam se meu pai fizesse o pagamento. Nos 15 primeiros dias, sofri muito sem saber nada da minha família.

Depois procurei lembrar de festas a que havia ido, de aniversários, e planejei viagens para quando terminasse a faculdade. A comida era boa, cinco refeições por dia. Não passei frio. Não me molhei.

'SITUAÇÃO COMPLICADA'

Um momento marcante foi a chegada do policial Edelio Morínigo. Era 5 de julho. Quando me disseram para não conversar com a polícia, pensei que a ajuda estivesse chegando. Fiquei animado. Mas quando descobri que estavam falando do novo refém, que estava na outra ponta da minha corrente, pensei: 'Se eles estão prendendo até a polícia, a situação está bem mais complicada'.

Só pedi para me soltarem uma vez. No dia do meu aniversário. Quinze dias antes eu fiz o pedido, mas não me falaram nada. No dia 3 de outubro, minha data, perguntaram se era mesmo meu aniversário.

Quando falei que sim, disseram: 'então vamos fazer um bolo'. E fizeram. Com recheio de marmelada.

Outro pedido que fiz foi para ouvir música. Estava ficando louco. Então por alguns dias deixaram eu ouvir música em uma estação de rádio. Isso me ajudou muito.

É muito difícil ficar o dia todo vendado, sem fazer nada. O dia todo acorrentando a uma árvore. Você começa a lembrar de tantas coisas às quais nunca havia dado importância. Até de data de santos eu me lembrei.

NATAL

Dois ou três dias antes do Natal, não sei direito, me disseram para arrumar as coisas porque iríamos andar. Fizemos isso várias vezes. Era rotina. A diferença foi que mandaram eu separar os meus objetos dos do policial. Então percebi que tomaríamos rumos diferentes.

Começamos a andar, e andamos muito. Numa noite, ouvi o barulho de pessoas comemorando e também ouvi fogos de artifício. Sabia que era o Natal.

Quando eles me liberaram, tiraram a minha venda e eu nem olhei para trás. Um deles apertou a minha mão e me disse: 'boa sorte'.

AFP
Arlan Fick entrega cesta de Natal a moradora de favela de Concepción
Arlan Fick entrega cesta de Natal a moradora de favela de Concepción

Quando cheguei à estrada, fui a uma casa e pedi para telefonar. A pessoa que atendeu me disse: 'Você não é Arlan? Eles libertaram você?'.

Meu pai não acreditou que fosse eu. E é lógico que não consegui falar com ninguém nos primeiros telefonemas. E, quando finalmente consegui, ele pensou que fosse trote. Falei em alemão para ele ter certeza de que era eu.

Hoje, vejo tudo de uma forma diferente. Até mesmo o chão da minha casa é, para mim, outro chão. E até mais brilhante.

Passei a dar valor a tanta coisa a que não dava antes. Como a minha liberdade.

Nunca imaginei que seria tão feliz em poder acordar pela manhã e olhar para o sol. Isso para mim é felicidade.

Ainda não sei o que será da minha vida daqui para a frente. Tenho que pagar algumas promessas. Já que pedi ajuda para Deus e para todos os santos dos quais me lembrei.

Esqueci de todos os planos que fiz enquanto estava lá. Eram só para me manter animado. Agora, vou ter de fazer novos planos.


Endereço da página: