Folha de S. Paulo


Análise: Tradição do islã é diversa e vai além de ideologia radical

Os horrorosos e covardes ataques terroristas das últimas semanas no mundo islâmico têm levado muitos no Ocidente a se perguntar que tipo de tradição, afinal, é o islã?

Os de boa vontade, que buscam a conciliação, dizem que é "uma religião de paz". Sim, mas o mesmo se poderia dizer de todas as outras grandes religiões mundiais.

O fato é que o islã é visto como um mundo desconhecido e terrivelmente violento na visão do público ocidental. Mas, por outro lado, e em contraste com a opinião convencional, o islã não constitui um bloco monolítico, rígido, indivisível, absolutamente homogêneo e uniforme, com interesses unívocos que colocam em risco a paz internacional.

Pelo contrário, ele abriga uma rica e diversificada variedade de culturas e opiniões. O islã, ademais, não tem um centro único; a diversidade de perspectivas teológicas, culturais e políticas é verdadeiramente impressionante. A islamofobia ocidental se explica também pela desinformação e o preconceito.

Infelizmente, há que se constatar que esta desinformação continua existindo, mesmo em nossas sociedades de informação incessante. Há que se reconhecer também que ações violentas e tresloucadas de grupos extremistas, que usurpam o nome do islã, como o Taleban, a Al Qaeda, ou o Estado Islâmico, contribuem em muito para esta situação.

Miguel Ángel Molina - 20.dez.2014/Efe
Restauradora trabalha em Alhambra, palácio islâmico no sul da Espanha
Restauradora trabalha em Alhambra, palácio islâmico no sul da Espanha

Como disse o xeque magrebino Ahmed al-Alawi, célebre representante do islã tradicional e espiritual no século XX: os extremistas se dizem "reformadores", mas na verdade estão corrompendo o patrimônio da tradição com sua intolerância e fanatismo.

Em outras palavras, não somente ainda há no Ocidente uma grande ignorância sobre a natureza do islã, como há também, como resultado do terrorismo, uma grande hostilidade. A causa dessa hostilidade não é difícil de entender, mas ela não deixa de ser algo paradoxal.

Algumas das principais figuras islâmicas –que são as vozes autênticas da tradição– são há muito conhecidas e admiradas no Ocidente, como por exemplo os poetas persas Rumi e Omar Khayyam.

Há ainda uma obra literária famosa que é familiar e muito apreciada no Ocidente, as "Mil e Uma Noites". Mais ainda, no campo da arquitetura, temos duas maravilhas que são a Alhambra em Granada, na Espanha, e o Taj Mahal, em Agra, na Índia, que são alguns dos edifícios mais admirados do mundo.

Para dizer o mínimo, tudo isto está bem longe da noção de islã que existe na mente do público. Dar uma noção mais abrangente do islã é nosso propósito aqui. A tradição islâmica –e não só ela– se tornou objeto de desvio e degradação.

A sabedoria islâmica é falsificada ao ser mesclada com projetos políticos seculares superficiais e imediatistas. Muitos periódicos e livros apresentam hoje, de forma sistemática, uma imagem distorcida e enganadora.

Entre outras coisas, alega-se que o islã é intolerante para com pessoas de outras fés. Na verdade, entre as grandes religiões, o islã se destaca pelo grau de tolerância que, por toda a história, ele mostrou para com tradições não-islâmicas, particularmente o cristianismo e o judaísmo.

Isto se deu porque a tolerância para com os "Povos dos Livros" vem diretamente do Corão e está incorporada na lei islâmica. Muitos, sem dúvida, reagirão a esta afirmação com incredulidade, mas exporemos melhor este assunto a seguir.

Muito do que diz respeito ao patrimônio intelectual, cultural e espiritual do islã é apresentado de maneira truncada, distorcida e parcial. Para piorar, o terrorismo "islâmico" engendra obviamente grande, e compreensível, hostilidade.

Não se deve esquecer, contudo, que o terrorismo urbano é um fenômeno recente, que tem início apenas no final do século XX, com a decadência social, econômica e cultural de muitas nações muçulmanas e a presença ocidental cada vez mais invasiva em Dar el Islam (literalmente, "a morada do islã", significando o mundo islâmico).

Geralmente se alega que o islã é intolerante para com pessoas de outras fés. A história, contudo, mostra outra realidade. Isto deve surpreender a muitos, mas o importante a reter aqui é que muito do que passa por associado ao islã na época atual, como o terrorismo, movimenta uma ínfima minoria de sua população e é uma deformação de sua mensagem original.

Fala-se que os terroristas islâmicos são anticristãos. De fato, algumas vezes este parece ser o caso. Mas não se realça que a violência também é dirigida contra outros muçulmanos. Estes, aliás, são as primeiras vítimas.

Houve muito ataques mortais na Indonésia, no Paquistão, na Turquia, no Iraque, no Afeganistão e outros países muçulmanos. E seria passar bem longe da verdade dizer que o terrorismo nos países islâmicos é dirigido apenas contra turistas.

Ele é dirigido contra todos os muçulmanos que não adotam a ideologia terrorista e que permanecem fiéis à religião tradicional; todos esses são alvos potenciais. Desta forma, os terroristas conseguiram uma intimidação geral.

HISTÓRIA

Historicamente, os cristãos foram os primeiros a experimentar a tolerância islâmica. Já nos primeiros anos da nova civilização (o profeta Maomé morreu em 632 d.C.), as forças do Crescente penetraram na Síria e na Palestina, em 635 d.C.

No ano 637, após longo cerco, entraram em Jerusalém pacificamente. O patriarca cristão, São Sofrônio, disse que não assinaria nenhum tratado de paz se não com o próprio califa Omar. O califa, assim, teve de viajar da Península Arábica para lá andando e cavalgando numa mula, com seu servo e ele mesmo se revezando na montaria.

Quando chegaram, era a vez do califa caminhar, e ele entrou em Jerusalém a pé. O patriarca e o califa assinaram o "Acordo de Omar", cujas cláusulas são aceitas pelos cristãos e muçulmanos de Jerusalém até os dias de hoje.

Quando o patriarca convidou o califa a rezar na Igreja do Santo Sepulcro, onde o corpo de Jesus havia sido posto após a crucifixão, Omar recusou, pois se o fizesse, os muçulmanos depois iriam desejar transformar a igreja numa mesquita.

Desde essa conquista inicial, Jerusalém tem estado sob jurisdição islâmica, com exceção da época dos cruzados, que durou 88 anos, no século XII. O segundo Templo de Salomão foi destruído pelos romanos, no ano 70 d.C., mas a Igreja do Santo Sepulcro, seguiu sendo utilizada como templo cristão até hoje, sob a responsabilidade de gerações de guardiões muçulmanos.

Quando os exércitos árabes chegaram à Índia, houve de fato destruição de templos e massacres. O que se pode dizer a respeito é que os muçulmanos depois vieram a compreender que os hindus não eram idólatras como os habitantes pré-islâmicos da Arábia, mas que eles também, à sua maneira, podiam ser vistos, por analogia, como "Povo do Livro". Em conseqüência, foram tratados com tolerância em áreas que os muçulmanos governavam.

A. Majeed - 19.dez.2014/AFP
Paquistaneses rezam em mesquita em Peshawar
Paquistaneses rezam em mesquita em Peshawar

Exércitos árabes nunca chegaram à Indonésia, mas este é hoje o mais populoso país muçulmano do mundo. Foram os mercadores árabes –e especialmente os sufis entre eles– que converteram a Indonésia e a península malaia.

Também os mongóis, varreram tudo o que estava no seu caminho, mas terminaram por adotar a religião dos conquistados. A expansão fulminante do islã deveu-se muito à persuasão, ao exemplo de vida de seus adeptos e também ao poder inerente de atração da tradição.

Mas a falsidade da alegação de que o islã se difundiu pela espada é mostrada de forma decisiva pelo fato de que as populações de Grécia, Espanha e Portugal, que estiveram sob domínio islâmico por vários séculos, permaneceram cristãs.

CONTRÁRIO AO TERRORISMO

Quanto aos muçulmanos de nossos dias, pesquisa recente, do instituto norte-americano Pew Center, mostra que a maioria dos maometanos em todo o mundo rejeita o terrorismo. Apenas 1% dos entrevistados afirmam que os homens-bomba e outras formas de violência contra alvos civis são justificados para a defesa do islã.

A maioria (81%) diz que estas formas de violência nunca são justificadas. Apenas 4% dos muçulmanos concordam que o apoio ao extremismo está crescendo entre eles.

A este respeito, deve-se distinguir entre fiéis "tradicionais" (ou espirituais), de um lado, e "revolucionários", de outro, estes últimos incluindo os grupos extremistas. Igualmente importante, há que se distinguir entre os muçulmanos tradicionais e os fundamentalistas.

Temos assim algumas categorias principais de correntes no mundo islâmico contemporâneo.

A primeira é constituída pelos muçulmanos tradicionais, liderados por figuras excepcionais como o rei Ídris da Líbia (governante entre 1951 e 1969, foi deposto num golpe militar liderado por ninguém menos que o coronel Muammar Ghaddafi) e Abu Bakr Tafawa (primeiro-ministro da Nigéria entre 1957 e 1966), ou os atuais governantes de Marrocos e Jordânia.

A segunda categoria é a dos wahabitas, ou os "fundamentalistas", estritamente falando; por seu literalismo e limitação, estão longe de representarem a tradição islâmica integral. O terceiro grupo é o dos "revolucionários islâmicos", como os seguidores do aiatolá Khomeini, no Irã, Khadafi na Líbia etc; eles são em geral demagogos e coletivistas, reivindicam o nome "islã", mas são letais para ele.

Infelizmente, é gente deste tipo que o público ocidental vê como "muçulmano típico". A categoria seguinte é a dos secularistas, e inclui figuras como Saddam Hussein, no Iraque, Assad na Síria, entre outros; são basicamente anti-religiosos, portanto o termo "fundamentalista religioso" certamente não se aplica a eles.

A quinta categoria, a mais insignificante em termos numéricos, mas a que certamente causa maior furor no Ocidente, é a dos grupos extremistas, como Talibã, Al-Qaeda e Estado Islâmico; eles constituem um amálgama explosivo de entendimento superficial e ideologicamente motivado da religião com fanatismo confessional, sem esquecer certa influência que tais correntes absorveram de ideologias políticas modernas, como o fascismo e mesmo o nazismo.

Os muçulmanos tradicionais consideram esses terroristas como os piores inimigos que o islã já teve em sua longa história.

WILLIAM STODDART, especialista em história e da filosofia das religiões, é autor de "Lembrar-se num Mundo de Esquecimento".

MATEUS SOARES DE AZEVEDO, mestre em história das religiões pela USP, é autor de "Homens de um Livro Só".


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