Folha de S. Paulo


Análise: Republicanos divergem sobre tortura da CIA

Hoje eles são velhos -um é incapaz de se vestir sozinho, e o outro vive com um coração transplantado. Velhos com histórias para contar e recontar para a posteridade, e histórias que ainda poderão moldar a história.

Quando eles eram jovens, tiveram que tomar decisões, e essas decisões moldaram o que eles disseram neste mês sobre uma terrível violação dos valores americanos.

John McCain era o impetuoso, embora impelido por deveres familiares a servir. Ele lutou em uma guerra impopular, foi derrubado, capturado pelo inimigo e torturado. Tudo o que ele sabe sobre o que a coerção e a dor fazem com a verdade aprendeu por experiência própria em uma cela no Vietnã.

Dick Cheney seguiu um caminho mais calculado. Entrando e saindo de faculdades, ele escapou da guerra com cinco adiamentos do recrutamento. Disse que "tinha outras prioridades nos anos 1960 que não o serviço militar". Desde cedo, ele aprendeu como era fácil fugir das responsabilidades.

Agora pode ser a última grande luta dos dois velhos: uma luta sobre a narrativa que será aceita pelo público sobre um momento em que uma nação perdeu o rumo por causa do medo.

Yuri Gripasy/Reuters
Senador John McCain (à esquerda) e ex-vice-presidente Dick Cheney discordam sobre tortura
Senador John McCain (à esquerda) e ex-vice-presidente Dick Cheney discordam sobre tortura

É notícia velha, diz você. Tortura de novo? Coleiras de cachorro e afogamento. Não vimos tudo isso em "A Hora Mais Escura", o filme que implicou -erradamente- que colocar pessoas em jaulas e amarrá-las durante dias levava à ruptura que apanhou o terrorista mais procurado do mundo?

Notícia velha, pode ser. Mas o que aconteceu na primeira década deste século será cinzelado como verdade, de certa forma, e transmitido em forma de lição para americanos que ainda não nasceram.

Cheney há muito tempo apoia a tortura, defendendo animadamente técnicas que foram chamadas de crimes de guerra quando usadas pelo Japão imperial ou a Alemanha nazista e que são proscritas em tratados assinados pelos países mais civilizados.

Sua principal alegação -que não é endossada por um corpo de evidências grosso como um catálogo telefônico- é que torturar terroristas levou a "resultados fenomenais", incluindo "a informação que nos permitiu pegar Osama bin Laden".

Sem ter lido o relatório da Comissão de Inteligência do Senado, Cheney rapidamente disse que a barbárie cometida em nome dos americanos foi "totalmente justificada". E, é claro, que ele faria tudo de novo, sem hesitação.

Dois dias depois, ele era a criança petulante apanhada e encurralada. Confrontado com evidências de que 26 detidos foram erroneamente mantidos, com exemplos de "alimentação retal" (outra definição de estupro), ou induzidos à hipotermia que provavelmente matou um suspeito, ele proclamou que o inquérito exaustivo estava "cheio de merda". Ele ainda não tinha lido o relatório.

É grosseiro chamar alguém de mentiroso. Então saiba pela rara manchete publicada recentemente no site Politico: "Dick Cheney estava mentindo sobre a tortura".

Era um artigo escrito por Mark Fallon, que estava no lado de dentro -ele era o agente especial encarregado de uma força-tarefa que obteve informações de numerosos suspeitos de terrorismo.

O que Fallon concluiu é o que qualquer leitor honesto do relatório do Senado concluirá: que "em nenhum momento" o programa de tortura produziu informações que evitaram uma ameaça terrorista. Nem levou a Osama bin Laden. Essa brecha veio de um detido, Hassan Ghul, que desde o início "cantou como um passarinho", segundo um oficial.

Cheney não pode aceitar isso e, provavelmente, nunca o fará. Fazê-lo o abriria a novas buscas pela verdade -principalmente sobre uma guerra no Iraque construída sobre informações falsas. Ele fala em nome de muitos defensores da tortura no Partido Republicano.

A exceção é John McCain. Seus princípios, o discurso direto que fez dele a esperança dos eleitores de mentalidade independente algum tempo atrás, fizeram falta nos anos desde que os republicanos abandonaram as ideias da corrente dominante. Ele foi rápido demais para dar uma chance à guerra ao redor do mundo.

Mas, sobre o ponto singular que definiu o guerreiro McCain, ele foi coerente: não precisamos nos tornar bandidos para lutar contra bandidos. E se esse argumento não é bastante convincente, considere o histórico de eficácia da tortura: ela não funciona.

Quando o ex-prisioneiro de guerra foi ao Senado para se pronunciar sobre a questão, fez um dos melhores discursos de sua vida. "Acredito que o povo americano tem o direito -na verdade, a responsabilidade,- de saber o que foi feito em seu nome", disse.

Alguém duvida disso? Sim. O presidente da Comissão de Inteligência da Câmara, o republicano Mike Rogers, disse que divulgar o relatório foi "péssima ideia".

Eis a resposta de McCain: "A verdade às vezes é difícil de engolir. Às vezes ela nos causa dificuldades em casa e no exterior. Às vezes ela é usada por nossos inimigos em tentativas de nos prejudicar. Mas o povo americano tem o direito a ela, de qualquer modo".

O que acontece com um país que abandona seus valores quando dominado pelo medo? "Sobretudo, sei que o uso da tortura compromete aquilo que mais nos distingue de nossos inimigos -a crença de que todas as pessoas, mesmo os inimigos capturados, possuem direitos humanos básicos."

Quando McCain terminou de falar, a senadora Dianne Feinstein, da Califórnia, aproximou-se de seu colega. Ela havia feito seu próprio discurso memorável, no qual disse: "A história nos julgará por nosso compromisso com uma sociedade justa, governada pela lei, e a disposição a enfrentar uma verdade terrível e a dizer 'nunca mais'".

Quando McCain saiu do plenário, com o passo cauteloso de um homem fisicamente ferido em serviço quase meio século atrás, a senadora Feinstein o beijou no rosto. Foi uma maneira de agradecer a um herói de guerra cujas palavras, se os EUA acreditam no que prega, sobreviverão aos comentários de um covarde.


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