Folha de S. Paulo


É preciso agradecer ao papa e a Deus pelo diálogo entre EUA e Cuba

Minha mulher, Lucía, começou a chorar com a notícia. Lucía nasceu em dezembro de 1959. Seu pai emigrou para os EUA quando ela era jovem demais para guardar uma lembrança dele. E Lucía não voltou a vê-lo.

Ele nunca retornou a Cuba –nos anos 1960 e boa parte dos 1970, não podia fazê-lo–, nem ela viajou aos EUA –até os anos 1990, não pôde fazê-lo–, e, quando finalmente o fez, seu pai tinha morrido. Lucía chorou hoje por seu pai perdido, por ela e seu amor encerrado em si mesmo, por tantas histórias tristes que vivemos. Mas chorou também pela ilusão de que, a partir de hoje, essas histórias talvez nunca voltem a se repetir.

Hoje é 17 de dezembro de 2014. Como a cada 17 de dezembro, os católicos cubanos e os crentes da santeria iorubá celebram o dia de São Lázaro ou o de Babalú Ayé. Ou festejam os dois, o santo e o orixá, porque um cubano pode acreditar em muitas coisas ao mesmo tempo. Por isso a reação de minha mãe foi dar graças a são Lázaro –sua efígie sempre esteve no pequeno altar de seu quarto– por ter podido assistir a algo que ela, em seus 86 anos, nunca acreditou que veria: que Cuba e EUA passassem por cima de todas suas diferenças políticas e históricas e que seus governos se dispusessem a estender-se as mãos sobre as águas do estreito da Flórida. Por isso minha mãe acendeu nova vela ao santo.

Eu, por minha parte, escrevo aturdido. Ainda me parece que estou no meio de um sonho, quando na realidade acordei de um pesadelo que nos perseguiu por tantos anos, o pesadelo da hostilidade, do desencontro, da inimizade entre dois países que a partir de hoje podem encontrar seus pontos de confluência mais que suas declarações de diferenças. Embora não seja crente –nem católico nem santeiro–, penso que é preciso agradecer não só ao papa Francisco, como fizeram Raúl Castro e Obama: seria preciso ir mais acima e agradecer a Deus, porque em circunstâncias assim não me resta outra opção senão acreditar em sua existência.

Dois presidentes conversam, acordam, concedem. Os prisioneiros retornam às suas famílias. Anuncia-se o começo do fim do bloqueio/embargo, após 52 anos. Diálogo em lugar de ofensas. Vontade de entender-se, de mudar, de superar o ódio... Um presidente cubano que anuncia medidas mútuas para normalizar os vínculos entre os dois países. Um presidente norte-americano que faz história, entra para a história, quando admite que estamos mudando nem mais nem menos que a História, simplesmente porque é o certo.

Lucía tem razões para chorar; minha mãe, para dar graças ao pobre e leproso são Lázaro; eu e muitos cubanos em nos sentirmos aturdidos, mas felizes por estarmos despertos. Esta é a realidade: Cuba e EUA anunciam que restabelecerão relações. Um dia para ficar na história. Uma porta que se abre para um futuro que, necessariamente, terá que ser melhor. Com todos e para o bem de todos, como disse certa vez José Martí.

LEONARDO PADURA, escritor cubano, é autor de "O Homem que Gostava de Cães", entre outras obras


Endereço da página:

Links no texto: