Folha de S. Paulo


Relatório de tortura na CIA teve partes retiradas a pedido de britânicos

Referências a agências de inteligência britânicas foram deletadas, a pedido delas, do relatório americano sobre o uso de tortura pela CIA após o 11 de Setembro.

Um porta-voz do premiê britânico, David Cameron, reconheceu que o Reino Unido teve atendido seu pedido de que fossem deletados elementos do texto antes de sua publicação.

O gabinete do premiê tinha dito anteriormente que quaisquer cortes no texto só teriam sido pedidos por razões de "segurança nacional" e não continham qualquer sugestão de que agências britânicas tivessem participado de tortura ou transferências irregulares de prisioneiros.

Mas a admissão do fato vai alimentar suspeitas de que o relatório, não obstante tecer críticas contundentes à CIA, foi editado para ocultar o modo como aliados estreitos dos EUA se envolveram no programa global de sequestros e tortura montado após os ataques da Al Qaeda.

Na quarta-feira (10), quando o relatório foi levado a público, o porta-voz oficial de Cameron, perguntado se foram pedidos cortes no documento, respondeu a jornalistas: "Que eu saiba, não foi pedido nenhum corte".

Na quinta-feira (11), porém, o vice-porta-voz oficial de Cameron falou: "Pelo que eu sei, não foram pedidos cortes para deletar qualquer sugestão de envolvimento do Reino Unido em supostas torturas ou transferências irregulares. Mas creio que houve uma conversa com as agências e suas contrapartes americanas sobre o resumo executivo. Quaisquer cortes possíveis teriam sido pedidos por motivos de segurança nacional, como poderíamos fazer com qualquer outro relatório."

Os dois casos principais relevantes ao envolvimento das agências de espionagem britânicas são os de Binyam Mohamed, cidadão britânico torturado e levado a Guantánamo em segredo, e o sequestro de dois dissidentes líbios destacados, Abdel Hakim Belhaj e Sami-al-Saadi, e suas famílias, levados de avião em 2004 a Trípoli, onde foram torturados pela polícia secreta de Muammar Gaddafi.

O relatório resumido de 500 páginas do Senado não contém qualquer referência às agências de inteligência britânicas ou ao território britânico de Diego Garcia, usado pelos EUA como base militar. Mas o resumo executivo contém trechos fortemente editados em toda sua extensão, motivando especulações de que possam ter sido apagadas referências a aliados dos EUA.

Na esteira do relatório do Senado, o governo britânico está sendo submetido a pressões crescentes para ordenar uma inquérito mais transparente sobre as ações do MI5 e MI6, em meio a alegações de cumplicidade britânica com o programa norte-americano de tortura.

Indagado sobre a necessidade de um inquérito público completo, o vice-primeiro-ministro, Nick Clegg, admitiu ontem que estará aberto à ideia, se uma investigação em curso do Comitê parlamentar de Inteligência e Segurança (ISC), que se reúne semanalmente em segredo, deixar perguntas remanescentes sem resposta.

O governo também sugeriu que Cameron não teria excluído essa possibilidade, caso o ISC não ponha um ponto final na questão.

Inicialmente o governo tinha pedido um inquérito dirigido pelo juiz aposentado sir Peter Gibson para analisar o tratamento dado a detentos pelo Reino Unido após o 11 de setembro.

Mas Gibson só conseguiu produzir um documento preliminar levantando 27 perguntas sérias sobre o comportamento dos serviços de segurança britânicos, antes de o inquérito ser substituído por uma investigação a cargo do ISC, em dezembro do ano passado.

Contudo, o relatório do ISC sobre o envolvimento do Reino Unido em transferências forçadas após o 11 de setembro não ficará pronto antes da eleição de 2015; logo, não está claro quantos integrantes do comitê de nove parlamentares e pares ainda estarão no Parlamento para concluir o trabalho.

O presidente atual do comitê, o ex-secretário do Exterior sir Malcolm Rifkind, disse que a investigação anterior feita pelo ISC do envolvimento britânico em transferências forçadas de prisioneiros em 2007, que exonerou as agências, "foi criticado severamente, com razão, porque na época o MI6 não entregou ao comitê todos os materiais contidos em seus arquivos".

Rifkind acredita que isso não vai se repetir. Mas a investigação atual do ISC não vai examinar os dois casos chaves dos dissidentes líbios sequestrados e entregues ao regime de Gaddafi, porque eles são sujeitos de um inquérito policial.

Parlamentares dos três partidos principais disseram que os pedidos feitos por agências britânicas de que trechos fossem deletados do relatório americano destacam a necessidade de um inquérito público mais transparente que aquele que está sendo feito pelo ISC, que entrega seus relatórios a Downing Street para serem previamente aprovados.

O deputado conservador David Davis disse: "A virada de posição de Downing Street em relação à sua negação anterior de que tenham havido cortes vem confirmar o que já sabíamos: que houve cumplicidade e que esse fato não foi refletido no relatório do Senado americano.

Sabemos, pelo comportamento do governo anterior em relação ao caso de Binyam Mohamed, que o termo 'segurança nacional' envolve constrangimento nacional."

A ex-ministra liberal-democrata Sarah Teather acrescentou: "Não vale empurrar o problema para o futuro e torcer para que um governo futuro cuide disso. Já tivemos vários inquéritos pela metade. Olhando o que aconteceu nos últimos dias e vendo os comentários voar, é exatamente essa a experiência vivida por ativistas que vêm procurando fazer com que seja feita justiça às pessoas que acusaram os serviços de inteligência britânicos de agir desse modo."

A deputada trabalhista Diane Abbot opinou que "primeiro precisamos saber o que foi deletado dos relatórios", e em segundo lugar é preciso que seja revelado o que os ministros do governo britânico sabiam na época.

"Os Estados Unidos pelo menos estão tentando ser honestos em relação ao que aconteceu", ela disse. "Vergonhosamente, as autoridades britânicas querem esconder sua cumplicidade com a tortura. Precisamos saber quanto os ministros sabiam. E se não sabiam, por que não sabiam."

Antes disso, Abbot, que se candidatou à liderança do Partido Trabalhista, competindo com os irmãos Miliband, disse que o ex-ministro do Exterior David Miliband precisa ser "completamente transparente" sobre seu envolvimento naquela era.

Mas Ed Miliband saiu em defesa de seu irmão. "Ele já falou sobre esse assunto no passado", disse o líder do Partido Trabalhista. "Se como ele levava essas questões a sério quando estava no governo. Sei que ele respondeu a perguntas sobre isso na Câmara dos Comuns, quando estava no governo. Ele não é alguém que toleraria que o Estado britânico se envolvesse nesse tipo de atividade."

Indagado sobre se Tony Blair tem perguntas a responder, Ed Miliband disse: "Qualquer pessoa que tenha lido o relatório deve estar profundamente perturbado. Não direi mais que isso. O governo anunciou anteriormente um inquérito sobre essas questões e então segurou o inquérito porque havia casos tramitando na Justiça. É correto deixar que esses casos sigam adiante nos tribunais."

Tradução de CLARA ALLAIN


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