Folha de S. Paulo


Egito vira centro mundial do tráfico de órgãos; rim chega a custar R$ 32 mil

O Egito atende a todos os requisitos para ser um dos centros mundiais do tráfico de órgãos. Além de desigualdades sociais, o país tem alto contingente de refugiados e vem sendo abalado por instabilidade política crônica desde o levante popular de 2011, o que reduziu sua capacidade de implementar suas próprias leis.

Segundo a fundação Global Finance Integrity, o tráfico de órgãos movimenta entre € 500 milhões (R$ 1.6 bilhão) e € 1 bilhão (R$ 3.2 bi) por ano no mundo, e o Egito é um dos principais países de origem de doadores.

"A lei egípcia que proíbe qualquer tipo de venda de órgãos não é aplicada. Mais de 90% dos transplantes realizados aqui são frutos de transações comerciais", denuncia sob condição de anonimato um ativista.

Osama Abdel-Hani, professor de medicina na Universidade de Al Azhar, confirma a estimativa. "A grande maioria dessas cirurgias é ilegal. Mas a situação atual não permite nenhuma outra opção."

Após anos de solicitações e pressões, em 2010 o Parlamento egípcio aprovou uma nova legislação que, pela primeira vez, autoriza o transplante de órgãos de mortos.

Mas não foram definidos os mecanismos institucionais que permitirão que esse tipo de operação, ainda inédita no Egito, seja realizada. Imersos numa acirrada luta pelo poder, os diversos governos que assumiram o país vêm tendo outras prioridades.

O teor da lei de 2010 foi uma decepção grande para os ativistas. Ao deixar de limitar as doações de órgãos de pessoas vivas a membros de uma mesma família, a lei abriu a porta à continuação de práticas corruptas.

"Desde a faculdade de medicina, pressionaremos o novo governo para que efetive a doação de órgãos de cadáveres", disse Abdel-Hani. "É a única saída. A situação atual põe os cirurgiões diante de grandes questões éticas."

INTERMEDIÁRIOS

As transações de órgãos costumam ser feitas por meio de um intermediário, que procura doadores entre os setores mais vulneráveis e desfavorecidos da sociedade.

Apesar de vários hospitais terem sido fechados em 2009 por terem realizado transplantes ilegais, a tolerância atual chega a possibilitar anúncios em jornais.

"Um transplante de rim custa mais de € 10 mil (cerca de R$ 32 mil), mas os doadores só recebem uns € 1.500 (cerca de R$ 4.700). É exploração descarada", comenta o ativista.

Segundo a ONG Coalition for Organ Failure-Solutions (Cofs - Coalizão para Falência de Órgãos-Soluções), 60% dos doadores egípcios são analfabetos, o que facilita que sejam enganados, e 94% lamentam tê-los vendido.

Devido à grave crise econômica do país, o tráfico de órgãos está em alta. De pouco mais de mil transplantes de rins em 2009, foram realizados mais de 3.000 em 2012.

Esses números abrangem apenas os transplantes registrados pelo governo. Há um mercado negro paralelo que se nutre sobretudo de refugiados e ao qual recorrem principalmente cidadãos de outros países da região, como Arábia Saudita e Líbano.

Em vista do sigilo que cerca essas operações, é impossível fazer uma estimativa mais certa de seu número.

REFUGIADOS

Devido sua situação de fragilidade legal e econômica, um dos principais alvos desse mercado negro de órgãos é a comunidade de mais de 20 mil refugiados sudaneses.

Normalmente os doadores consentem com a transação, mas já foram denunciados casos de extração de órgãos por meio de sequestros.

"Após a queda do ditador Hosni Mubarak em 2011, os abusos vêm sendo mais frequentes e mais graves, mas é difícil quantificar as vítimas", diz Debra Budiani-Sabeir, uma pesquisadora da Cofs.

São ainda mais medonhas as histórias sobre as quadrilhas que traficam pessoas na península do Sinai. Nos últimos anos, milhares de refugiados foram sequestrados e torturados, às vezes até a morte, para forçar suas famílias a pagar resgates que podem chegar a € 35 mil.

"Quando chegamos à casa de tortura, ameaçaram arrancar nossos órgãos se não pagássemos", conta Benjamin, um menor de idade etíope que conseguiu escapar.

"Os criminosos tiram amostras de sangue de algumas vítimas e as mandam aos intermediários. Cheguei a encontrar corpos no deserto sem vários órgãos", conta Hamdi al-Azazi, fundador da ONG Novas Gerações, presente no Sinai e que procura ajudar as vítimas. Os órgãos acabam sendo transplantados clandestinamente em hospitais do Cairo e Israel.

Mas essa prática diminuiu desde o golpe contra o ex-presidente islâmico Mohammed Mursi, em julho de 2013. Para neutralizar os ataques lançados contra as forças de segurança por organizações jihadistas no Sinai, o Exército lançou uma ofensiva grande na península. "Desde então, não encontrei mais corpos no deserto", diz al-Azazi. "Alguns traficantes foram presos, outros morreram e o restante simplesmente fugiu."


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