Folha de S. Paulo


Criminalização de homossexuais ameaça turismo gay no Marrocos

Nos últimos séculos, estrangeiros como o escritor francês André Gide e o britânico Joe Orton viram no norte da África um porto seguro para aventuras e fantasias sexuais com outros homens.

O turista britânico Ray Cole, 69, recentemente descobriu, no entanto, que o "seguro" não está sempre garantido por esses portos.

Ele viajou a Marrakech, símbolo do turismo gay no Marrocos, onde viu que a homossexualidade não só é crime como pode levar à prisão.

Cole visitava seu namorado, um morador local cuja identidade a Folha prefere preservar, quando foi abordado pela polícia.

Com base em imagens em seu celular, ele foi condenado por "atos homossexuais", pelo que cumpriu 20 dias na cadeia. Seu namorado também foi detido e responde, hoje, em liberdade.

A prisão de homossexuais, em especial de estrangeiros, é rara no Marrocos. Mas a notícia do infortúnio de Cole serviu para derrubar a procura por hotéis em Marrakech em um dia em 46%, de acordo com um site de viagens, ao deixar evidente que os direitos dos gays ainda estão, ali, longe de ser respeitados.

Em visita à cidade, a Folha conversou com dois jovens gays que preferiram não dizer seus nomes reais. Ambos afirmaram, inicialmente, que "é fácil ser homossexual no Marrocos". Com poréns. "Você só precisa respeitar os outros", diz Muhammad, 24.

"Eu não beijo meu namorado na rua. Não quero ser preso", afirma, antes de acusar o jovem detido com o turista britânico de não ter sido "discreto" o suficiente.

"Não temos problemas, se não nos prostituirmos ou acompanharmos um velho turista", diz Mahmud, 21. "Todo o mundo na minha universidade sabe que sou gay. A repressão depende da mentalidade. Os idosos e os religiosos não aceitam."

A associação Kifkif, de defesa dos direitos homossexuais, é exemplo da dinâmica marroquina de repressão e tolerância nessa área.

"Somos uma organização ilegal", diz, em Madri, o fundador da entidade, Samir Bargachi, 27.

O fato de a homossexualidade ser um crime lhes impede de montar um aparato oficial no país. "Ao mesmo tempo, o governo conhece as nossas atividades e faz vistas grossas."

Mas a lei, afirma, é apenas uma etapa inicial das mobilizações de direitos gays no país. A questão seguinte, e que sustenta a própria ideia de criminalizar a homossexualidade, é a social.

"O Marrocos é um país religioso e patriarcal, onde o papel masculino é asfixiante. Seus genitais lhe definem", diz. "Na nossa vida está sempre presente a possibilidade de que os vizinhos chamem a polícia."

Apesar de que, com os avanços sociais, Bargachi aponte também para a existência de um debate político a respeito do tema, com cada vez mais frequentes casos de juízes que se recusam a aplicar o artigo 489 da legislação para condenar gays.

"É um caminho muito longo", diz Ibtisame Lachgar, do Movimento Alternativo para as Liberdades Individuais, que organiza ações de conscientização no país.

"A sociedade culpa os 'ocidentais', que enxergam como os responsáveis. Para os marroquinos, foram os estrangeiros que trouxeram esse 'vício' ao país. Eles não acreditam que haja marroquinos gays, e sim que essa seja uma espécie de prostituição entre um ocidental e um local."

O que também significa que, enquanto o britânico Cole terá respaldo em seu país desde que foi libertado, em outubro, seu namorado ainda está em Marrakech diante da ideia de um pesadelo futuro.

O jornalista DIOGO BERCITO viajou a convite do seminário "Diálogos do Atlântico"


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