Folha de S. Paulo


Depoimento: Ressaca da queda do Muro de Berlim não foi festiva

Na manhã de 10 de novembro de 1989, o telefone tocou em minha sala na revista "Bild der Wissenschaft", em Stuttgart (na então Alemanha Ocidental). Um jornalista da Folha me perguntava sobre a queda do Muro de Berlim.

Achei que era piada, mas o colega informou que a notícia havia sido distribuída pelas agências de notícias na noite anterior. Saí perguntando pela redação da revista, onde fazia estágio com bolsa da Fundação Krupp.

Ninguém sabia de nada.

É bom lembrar que não havia internet, email, redes sociais. Os diários alemães eram concluídos por volta das 19h, mais ou menos na mesma hora em que o porta-voz do governo alemão-oriental, Günter Schabowski, anunciara uma das maiores notícias do século 20. Muitos jornais não a estamparam no dia seguinte. Quem não assistiu à TV tarde da noite ficou sem saber.

Fazia meses que alemães ao leste da Cortina de Ferro estavam fugindo para o Ocidente pela fronteira da Hungria com a Áustria.

Muitos eram moradores de regiões socialistas que já haviam sido de domínio alemão antes da Segunda Guerra, os chamados "Aussiedler", mas havia também refugiados da Alemanha Oriental entre eles.

O comitê central do SED (sigla em alemão para Partido Socialista Unificado da Alemanha) decidiu permitir a saída dos seus cidadãos que quisessem deixar o país para sempre, mas o comunicado que seria divulgado por Schabowski tinha redação dúbia.

Na entrevista coletiva, o porta-voz leu o comunicado. Um repórter do "Bild" perguntou quando entraria em vigor. Titubeante, Schabowski respondeu que, de seu conhecimento, era imediatamente.

A boa nova espalhou-se como um rastilho de pólvora aceso. No caminho, perdeu-se a informação de que se autorizara a saída definitiva, o que implicava perda de cidadania. Multidões de alemães orientais se dirigiram aos postos no Muro de Berlim.

Guardas de fronteira da Alemanha Oriental, que tinham a reputação de atirar para matar (e o fizeram 136 vezes só em Berlim), não sabiam o que fazer. A tensão aumentava. Aí veio a ordem sensata para deixar passar.

A Alemanha Oriental começou a acabar ali, e seu enterro definitivo se daria menos de um ano depois, em 3 de outubro de 1990. Retido em Stuttgart pelo compromisso com a bolsa da Krupp, assisti à coisa toda de longe quando ainda era festa.

Em março, me mudei para Berlim e cobri para a Folha a fase de ressaca. Vale dizer, a negociação para reunificar um país moribundo com uma potência econômica. Na realidade, era uma ditadura que sucumbia sob o peso de uma ficção inviável.

As cicatrizes estão visíveis até hoje, como tem mostrado a série de reportagens de Leandro Colon na Folha. Há mais desemprego e menos renda ao leste da fronteira que deixou de existir. Entre 1,5 milhão e 2 milhões de alemães-orientais migraram para a banda ocidental do novo país.

Vale ainda o que escrevi cinco anos atrás: "A história acontecia diante dos olhos, mas seus trabalhos, como na guerra, tinham um quê de mesquinho, sujo, pedestre. Era uma rendição em câmera lenta, inescapável e necessária, mas abjeta."


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