Folha de S. Paulo


Primeiro-ministro Cameron pode tirar Reino Unido da União Europeia

Faz pouco mais de um mês que David Cameron passou por uma experiência quase fatal com o referendo sobre a independência da Escócia, durante o qual sua opinião não mudou do começo ao fim.

Agora os parlamentares conservadores estão imaginando se o primeiro-ministro não estará avançando aos tropeços na direção de um referendo sobre a União Europeia, durante o qual ele terminará defendendo o resultado que originalmente pretendia derrotar –o abandono da União Europeia pelo Reino Unido.

Uma mistura tóxica entre uma vitória iminente do Partido da Independência do Reino Unido (Ukip) em sua segunda eleição parlamentar suplementar consecutiva e alguns desdobramentos nada propícios na União Europeia está forçando o primeiro-ministro a adotar posições cada vez mais duras.

E elas, aos olhos de muitos conservadores, reduzirão o espaço de manobra de Cameron caso ele consiga cumprir sua promessa de realizar um referendo sobre permanecer ou abandonar a União Europeia até 2017.

Ye Pingfan/Xinhua
David Cameron, premiê do Reino Unido, após participar de cúpula da UE, em Bruxelas
David Cameron, premiê do Reino Unido, após participar de cúpula da UE, em Bruxelas

"O primeiro-ministro parece não dispor de um assento ejetor", disse um desses conservadores. "Se as coisas continuarem como estão por muito tempo, ele pode se ver na porta de saída".

Todos os primeiros-ministros precisam encarar petardos problemáticos disparados de Bruxelas, como Tony Blair e John Major podem testemunhar com base em suas batalhas sobre a restituição orçamentária de 2005 e as guerras da carne bovina dos anos 90.

Cameron no momento está tendo de lidar com dois desses petardos de uma vez –a demanda pela Comissão Europeia de um pagamento adicional britânico de 1,7 bilhão de libras e o prazo, que está chegando ao fim, para que o Reino Unido opte por reintroduzir 35 medidas de justiça e assuntos internos propostas pela União Europeia, entre as quais um mandado de prisão que teria validade em toda a União.

Ao contrário de Blair e Major, porém, o primeiro-ministro lidera um partido que está vivendo uma espécie de colapso nervoso, em seu esforço por responder à ameaça do Ukip nas eleições suplementares que estão por vir em Rochester e Strood, e na eleição geral subsequente.

Os adversários e os partidários da União Europeia concordam em que a ameaça do Ukip significa que Cameron está oscilando e mudando de posição quanto a dois dos petardos lançados pela União Europeia que há muito ocupam a atenção do governo britânico –o mandado de prisão da União e a questão da imigração.

Há espanto por os líderes da bancada conservadora no Parlamento estarem aparentemente promovendo a esperança, entre alguns parlamentares, de que talvez haja uma forma de escapar ao mandado de prisão unificado da União, ainda que o primeiro-ministro e Nick Clegg, líder dos Liberais Democratas, o outro partido da coalizão governista, tenham concordado em que a participação britânica deve ser mantida.

Quanto à imigração, os oponentes da União Europeia perceberam, deliciados, que Cameron parece estar se preparando, como uma de suas principais demandas de negociação, para exigir grande mudança nos princípios fundadores da União Europeia quanto ao livre movimento de cidadãos.

Os adversários mais linha dura da União Europeia, que esperam que as negociações conduzam a uma saída britânica da União, receberam positivamente a intervenção da primeira-ministra alemã Angela Merkel, que declarou ao "Sunday Times" no final de semana que a Alemanha não concordaria com uma revisão tão fundamental do Tratado de Roma, que criou a Comunidade Econômica Europeia em 1957.

Acredita-se que a líder alemã esteja alarmada porque Cameron não mencionou a questão da imigração em seu discurso Bloomberg de janeiro de 2013, que supostamente serviria de base à renegociação britânica com a União Europeia.

Merkel, que foi consultada por Cameron na preparação para seu discurso, aparentemente ficou satisfeita, naquele momento, por ele ter aceitado o conselho de definir as reformas propostas no contexto de mudanças que poderiam ser adotadas em toda a União Europeia para adaptá-la ao século 21.

A decepção em Berlim diante da maneira pela qual Cameron está mudando de posição é percebida com igual agudez pelos adversários da União Europeia.

"Dissemos ao primeiro-ministro que o Ukip era uma ameaça e a imigração uma questão importante", disse um importante líder conservador. "Naquele momento, ele nos descartou, mas agora está abraçando a questão. No entanto, sua marca foi tão prejudicada que não lhe resta credibilidade alguma".

O primeiro-ministro se esforçou para acalmar os dois lados de seu partido dividido, na segunda-feira, quando deixou claro que não pagaria o total do 1,7 bilhão de libras demandado por Bruxelas como parte de um reajuste orçamentário.

Mas existem preocupações quanto à possibilidade de que ele esteja cometendo mais um erro tático - adotando uma posição firme demais que resultaria em recuo inevitável posteriormente.

Um ex-ministro disse que "quanto mais o primeiro-ministro estabelece metas que não é capaz de cumprir, maior a chance de que termine chegando a um lugar no qual não deseja estar. Os adversários da União Europeia embolsam o que ele está dizendo e jamais esquecem".

Outro ex-ministro foi cortante: "O primeiro-ministro está tagarelando sem pensar. Parece ter abandonado o esforço de enrolar a União Europeia".

Mas os pró-europeus estão confiantes em que Cameron terminará liderando uma campanha para manter o Reino Unido na União Europeia. "Não creio que David Cameron queira entrar para a História como o homem que destruiu seu partido. Ele seria como Sir Robert Peel, mas sem fazer algo em que acredita. Pelo menos Peel acreditava em repelir as Leis do Milho".

[Em 1846, o então primeiro-ministro Peel liderou a revogação das Leis do Milho, medidas protecionistas que favoreciam os proprietários rurais britânicos, com votos da oposição, causando um racha no Partido Conservador que ele liderava.]

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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