Folha de S. Paulo


Sistema biométrico para controle de compras irrita venezuelanos

Numa tarde recente, as filas nos caixas do supermercado Excelsior Gama, na zona leste de Caracas, eram tão longas que se perdiam loja adentro, travando a circulação pelas gôndolas.

Tudo por causa da chegada de um carregamento de leite em pó, produto raro numa Venezuela irritada pela escassez. No afã de garantir estoque, famílias chegavam em peso para maximizar a cota individual de seis pacotes.

Uma delas foi flagrada entrando e saindo da loja para trocar de roupa e burlar o controle, o que gerou gritaria. Os usurpadores por pouco não foram agredidos.

Para acabar com cenas como esta, constantes na vida dos venezuelanos, o governo está implementando um polêmico sistema biométrico de controle do consumo.

O plano pretende cadastrar digitais dos venezuelanos para restringir semanalmente a aquisição de 20 itens básicos, como açúcar e café.

O registro integrado das digitais em supermercados, lojas de conveniência e farmácias limitará as compras por consumidor em todo o país a partir de 31 de dezembro.

O objetivo é frear a revenda clandestina de mercadorias, que o governo diz ser a principal causa da escassez.

Contrabandistas adquirem em larga escala bens de consumo no país, onde preços são subsidiados e tabelados, para revendê-los no Brasil e na Colômbia. Um pacote de fraldas vendido na Venezuela pelo equivalente a R$ 4 custa R$ 29 em Boa Vista, segundo o site Amazonia Real.

Estrangeiros também só poderão comprar na Venezuela após se cadastrarem.

"Ao ver a máquina de digitais, o contrabandista sabe que ali não entra", disse o presidente Nicolás Maduro. O plano, segundo ele, garantirá às famílias "liberdade de acesso aos produtos de que precisam".

O sistema já vigora em lojas nas regiões fronteiriças e em alguns mercados estatais de Caracas. O mercado atacadista privado Makro anunciou que decidiu aderir à biometria em breve.

Na semana passada, o dispositivo parecia funcionar corretamente no maior Bicentenário de Caracas, supermercado estatal conhecido por ter filas que chegavam a durar o dia todo.

"Hoje foi rápido, mas quero ver se continuará assim", disse a dona de casa Selena Renan, depois que passou no caixa, onde registrou digitais e efetuou o primeiro pagamento no novo padrão sem dificuldade.

Segundo vendedoras, as filas também foram reduzidas com mais caixas operando.

A iniciativa é vista com bons olhos pela FAO, agência da ONU para temas alimentares e agrícolas. "O sistema pode ajudar a planejar o abastecimento e prevenir o contrabando", diz o brasileiro Marcelo Resende, representante do órgão no país.

Editoria de Arte/Folhapress

REJEIÇÃO

O dispositivo enfrenta rejeição de muitos venezuelanos, que o consideram mais uma ingerência no dia a dia imposta pelo esquerdismo implantado pelo então presidente Hugo Chávez em 1999.

No interior, a polícia reprimiu manifestantes contrários ao plano, que gera temores de racionamento de comida semelhante ao de Cuba.

"Isso cerceia a liberdade, garantida pela Constituição, de o cidadão ter acesso a alimentos e escolher os produtos que quiser", diz Roberto Leon Parilli, presidente da Anauco, órgão de defesa do consumidor.

"O sistema não reconhece que uma família de sete pessoas e outra de duas não têm as mesmas necessidades de consumo", afirma Parilli, para quem o contrabando de produtos é obra de máfias, "não de donas de casa."

Na linha de frente contra o projeto estão comerciantes furiosos por ter de arcar com o custo das máquinas, importadas, de captação das digitais. "Foi dito que o setor privado poderá integrar o sistema de forma voluntária, mas o governo pode pressioná-lo", prevê Carlos Larrázabal, vice-presidente da entidade empresarial Fedecámaras.

O verdadeiro problema, diz Larrázabal, é a economia chavista e o controle cambial, que criam distorção de preço favorável ao contrabando.

O sistema também é contestado pelas previsíveis falhas de funcionamento num país com frequentes blecautes e deficiências logísticas.

Dias atrás, o militar Luis Ramos aproveitou o horário de almoço para ir a um mercado estatal já equipado. "Não pude comprar porque o sistema estava fora do ar."

Editoria de Arte/Folhapress

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