Folha de S. Paulo


Na cabeça de Evo Morales, mulher é igual a ter bebês, diz cineasta

RESUMO A professora universitária, psicóloga, jornalista e feminista boliviana María Galindo, 54, mora em La Paz e é autora do filme "13 Horas de Rebelión", exibido na Bienal de Artes de São Paulo.

Uma das fundadoras da ONG Mujeres Creando, ela critica duramente o governo do presidente Evo Morales, que deve ser reeleito no próximo domingo (12), por ignorar as políticas para as mulheres e por reprimir a prostituição quando há algum atrito com a Igreja Católica.

David Mercado - 19.set.2014/Reuters
A cineasta María Galindo, 54, mostra ilustrações sobre o Kama Sutra em La Paz
A cineasta María Galindo, 54, mostra ilustrações sobre o Kama Sutra em La Paz

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Evo Morales banaliza e humilha as mulheres. Para o mundo, ele tem essa aura de representar uma mudança histórica, por ser o primeiro indígena presidente. Mas sua ideia de inclusão social não vai além dos povos originários. Todas as outras ditas minorias estão de fora, principalmente as mulheres.

Até mesmo nos anos liberais, com o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada (1993-97 e 2002-03), houve avanços para dar garantias à defesa da mulher e ao menos se discutia sobre o aborto.

Agora, com Morales, houve um imenso retrocesso. Ele fez a bolsa "Juana Azurduy", um pagamento mensal para você ter um bebê, como os nazistas. Na cabeça dele, mulher é igual a ter bebês, tem um papel claro na sociedade.

Enquanto isso, o número de mulheres que morrem ao tentar abortar é assombroso [a taxa de abortos na Bolívia é de 40 mil ao ano, e de mulheres mortas, 480].

Morales tem agora o apoio da igreja e das Forças Armadas e, com isso, abafou de vez a possibilidade de leis pró-aborto [só é permitido em caso de estupro ou risco de morte da da mãe] ou a favor do matrimônio homossexual.

Sou lésbica desde adolescente, mas não defendo a lei do casamento entre homossexuais. Sou mais radical. Não acho que se deva buscar entrar no sistema patriarcal. Prego a ruptura total.

Com meu grupo, o Mujeres Creando, tento defender as prostitutas. Cada vez que se indispõe com a igreja, Morales manda fazer um "rapa" nos locais de prostituição, e as moças vão para a cadeia.

O incrível é que, nessa mesma gestão, acontecem coisas como o estupro feito pelo legislador Domingo Alcibia Rivera, que atacou uma faxineira da câmara de Chuquisaca.

O estupro foi filmado pelas câmeras internas [as imagens estão no YouTube e tiveram ampla repercussão]. O sujeito recebeu uma admoestação menor e o crime foi esquecido, enquanto essa mulher teve a vida destruída [seu depoimento aparece no documentário "13 Horas de Rebelião", de Galindo, exibido na Bienal de Arte de São Paulo].

Depois temos aquele discurso de Morales, dizendo que soldados são intocáveis, mesmo que "pratiquem um estupro" [cena também está no filme].

O debate sobre esses temas não está acontecendo no Congresso nem deve entrar na pauta [espera-se que o MAS, partido de Evo, leve mais de 2/3 das vagas parlamentares]. Temos de esperar até 2020 [quando acabaria o próximo mandato de Morales, que tem 57% das intenções de voto na eleição do próximo domingo] para voltar ao debate.

Minha vida na Bolívia nunca foi fácil. Nasci em La Paz e cresci durante a ditadura de Hugo Banzer (1971-1976). Quando chegou a ditadura seguinte [entre 1978 e 1982, a Bolívia foi governada por várias juntas militares], eu era estudante de psicologia e militava num pequeno partido de esquerda, de orientação leninista-indigenista.

Já havia um estranhamento dentro do partido, porque eu era homossexual e eles achavam que isso debilitava o conjunto. Minha oposição ao governo era mais ampla que a deles, que falavam de revolução e democracia. Eu defendia, e defendo, uma ruptura no modo como nos relacionamos, ainda respeitando e realimentando as estruturas patriarcais.

Como não sabia onde me encaixar, resolvi ir embora. A única maneira que encontrei foi por meio de umas freiras italianas, que me levaram para morar em seu convento. Armei um disfarce até para mim mesma, pois não me considero religiosa. Estudei na Universidade do Vaticano, fiquei lá por cinco anos.

A Bolívia que eu encontrei nos anos 90 também não me agradou. A esquerda usava um discurso muito antiquado e limitado. Resolvi militar de forma independente. Em 1992, criamos o Mujeres Creando, onde damos assistência a prostitutas, a mulheres que querem abortar ilegalmente e temos intensa atividade artística, promovendo intervenções, encontros e filmes sobre o assunto.

Levo mulheres para falar sobre suas experiências; muitas vezes elas tiram a roupa na rua ou na frente das igrejas, e os primeiros a se revoltar e a chamar a polícia são, quase sempre, mulheres. Não gosto quando me perguntam sobre os problemas das políticas de gênero de Morales. Porque não considero que elas deveriam ser uma seção da administração.

A nacionalização do petróleo e do gás, por exemplo, é assunto de mulher, porque mexe numa economia em que ela é peça fundamental. O acesso às universidades, também. Ainda temos na Bolívia profissões em que só homens chegam a postos mais altos.

Ah, e milito pelo fim dos concursos de beleza, são a coisificação da mulher. Mas não sou pessimista, acho que muitas coisas acontecem fora das estruturas envelhecidas do governo. Essas mulheres que estão nas ruas, vendendo comida. Suas filhas estudam e fazem explorações sexuais. Sua postura diante do corpo e de seu lugar na sociedade mudará em pouco tempo.


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