Folha de S. Paulo


Opinião: Reino Unido sofre crise de identidade

LONDRES - O Reino Unido está deitado no divã. De repente, o país parece incerto de sua identidade, do lugar que ocupa no mundo e de suas relações com seus familiares mais próximos e seus vizinhos.

O país está tendo uma espécie de colapso nervoso, e seus amigos não sabem se deveriam dizer alguma coisa ou se devem desviar o olhar. Muitos britânicos se perguntam: "A Escócia ainda nos ama? Ela vai ficar conosco ou vai votar pelo divórcio? Mesmo que a gente não ame a União Europeia, será que realmente queremos abandoná-la? E, se a deixarmos, a América ainda vai achar que tem uma 'relação especial' conosco, ou será que está mais comprometida com outros, como Pequim ou Berlim?"

Os britânicos se perguntam se ainda estão em condições de se sentar à mesa das potências internacionais. Mesmo que conservem seu poder de dissuasão nuclear, será que realmente querem um Exército menor do que é o Exército britânico desde Waterloo? Depois de Tony Blair, do Iraque e do Afeganistão, intervir militarmente ao lado dos americanos ficou um pouco difícil, tanto assim que o primeiro-ministro conservador David Cameron pôde perder um voto no Parlamento sobre uma questão crucial -bombardear ou não a Síria- e não se sentir na obrigação de apresentar sua renúncia.

Nishant Choksi

A rainha Elizabeth 2ª é fantástica, experiente e confiável. Mas e um possível rei Charles 3°? Divorciado, impaciente, intrometido -alguns sugerem que se pule uma geração para chegar diretamente ao jovem e simpático William, com sua mulher bonitinha e filhinho perfeito.

E há o estranho governo de coalizão, o primeiro em décadas, e líderes partidários aos quais falta certa dose de credibilidade. Sem falar nas discussões intermináveis sobre imigrantes todos do leste europeu, o que dirá muçulmanos. A BBC está manchada por escândalos, e, depois dos julgamentos por escutas telefônicas, até os tabloides estão tendo que tomar cuidado. E não vamos nem falar da humilhação sofrida na Copa do Mundo.

Segundo Cameron, é hora de serem restaurados os "valores britânicos", mesmo que ninguém saiba defini-los com precisão.

Uma pesquisa no Reino Unido foi reveladora. Em 2003, 86% dos entrevistados achavam que era importante falar inglês para ser considerado "verdadeiramente britânico". Hoje, 95% são dessa opinião. Enquanto em 2003 69% consideravam que era fundamental ter passado "a maior parte de sua vida" no Reino Unido, hoje são 77% que pensam assim.

"Acho que não passamos por uma fase tão atribulada desde que seu pessoal se separou de nós", disse Martin Woollacott, editorialista do "Guardian", aludindo aos Estados Unidos. O referendo escocês em setembro, a eleição geral em maio próximo e a promessa de Cameron de promover um referendo para determinar a permanência ou não do Reino Unido na União Europeia "vão afetar nosso futuro profundamente", disse ele.

"Todos esses fatores podem fragmentar o Estado ou tirar o Estado da UE."

Independentemente do que vier a acontecer na Escócia, disse Woollacott, "tem que haver um novo início na política britânica".

É tudo muito diferente do Reino Unido mais pobre e muito menos cosmopolita que conheci mais de 30 anos atrás, quando aqui cheguei para viver como jornalista. Na época, Margaret Thatcher tinha acabado de conquistar sua vitória militar nas Falklands. Ela mudou o Reino Unido de dentro para fora, humilhando os sindicatos militantes e impelindo o Partido Trabalhista para um necessário confronto com a modernidade. Era admirada por muitos, desde a Casa Branca de Reagan até o Kremlin.

O historiador Simon Jenkins acha que, embora o país esteja passando por um período de perplexidade, ele é hoje um lugar mais autoconfiante do que era na década de 1970. Naquele tempo ouviam-se clichês sobre "o mal britânico" e "o doente da Europa". Isso, segundo ele, não existe mais.

Mesmo assim, para ele, o país cometeu erros graves -por exemplo, "ter se aliado estreitamente demais aos EUA em sua explosão neoimperialista" sob a égide de George W. Bush. "Nos embriagamos com o dinheiro, ignoramos a desigualdade, as províncias e o lado negativo do consumismo e do crédito. E nunca fizemos as pazes com a Europa."

Quando propus a um grupo de britânicos do establishment um diagnóstico da neurose nacional, ouvi uma espécie de suspiro coletivo. David Howell, hoje barão Howell de Guildford e ex-ministro do gabinete conservador, respondeu em "The World Today", revista do Instituto Real de Assuntos Internacionais.

"Injusto?", escreveu. "Com certeza. Irritante? Muito. Mas com um tom verídico que enfurece. Não se sabe bem como, no palco mundial em rápida transformação, a história britânica parece ter ficado mais confusa."


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