Folha de S. Paulo


Análise: Fracasso da democracia no Irã pode ser contada na luta em torno do véu

Nas últimas semanas, enquanto líderes dos Estados Unidos e da União Europeia participavam de negociações nucleares com o Irã, outra discussão era travada no ciberespaço entre mulheres iranianas e cidadãos do mundo.

Iranianas corajosas tiraram seus véus e posaram para as câmeras, numa campanha intitulada Minha Liberdade Furtiva. Enquanto autoridades ocidentais se esforçavam para impedir Teerã de conseguir "a bomba", a campanha das mulheres desencadeava uma explosão própria e provocava uma resposta agressiva do governo.

O regime que queimou efígies de Tio Sam e vendou reféns, como se recordam pessoas que assistiram à Revolução Islâmica de 1979 acontecendo na televisão, hoje é ofuscado por suas cidadãs mulheres. A campanha das mulheres mostrou que, embora a República Islâmica possa estar oficialmente no comando, seu esforço de 35 anos para impor sua ideologia sobre metade da nação fracassou, na maior parte.

Para retaliar as imagens de centenas de mulheres sem véu postadas no Facebook, Teerã prendeu jovens que postaram no YouTube um vídeo em que dançavam ao som de "Happy", de Pharrell Williams. A dança aconteceu sobre um dos telhados em que foi encenado o espetáculo histórico do aiatolá Ruhollah Khomeini entoando "Allah-akbar" em 1978, nos dias que antecederam a queda do xá.

Assim como o movimento dos direitos civis é importante para o entendimento da outra parte dos EUA, a história da luta de quase cem anos em torno do "hijab" é importante para a compreensão do Irã oculto. Quando o país foi modernizado, na primeira parte do século passado, o xá Reza Pahlavi, em 1936, instruiu seus gendarmes a arrancar os véus das cabeças de mulheres em público.

A abolição do véu e a dessegregação por gêneros definiu o governo de Pahlavi e se tornou o éthos do Irã moderno. Nos dias emocionantes de 1978, quando o zelo revolucionário dominou a nação, a maioria das vozes seculares abraçou o hijab como símbolo da rejeição da monarquia e seus valores.

Se acompanhamos a história do véu no Irã, podemos acompanhar o fracasso do movimento democrático no país. A liderança secular posicionou-se contra o clero na maioria das questões, incluindo a liberdade da imprensa e de expressão. Mas, quando se tratou da liberdade de vestimenta das mulheres ou da proteção dos direitos das mulheres, ela a considerou menos urgente que questões como um potencial golpe apoiado pelos EUA contra o regime ainda nascente. Na formação de uma coalizão com o clero contra o xá, o hijab foi uma concessão fácil para a oposição secular, dominada por homens, fazer a Khomeini.

Dias após a revolução de 1979, Khomeini deu a ordem de reinstauração do véu compulsório. Um grupo pequeno mas eficaz de mulheres, acompanhado por algumas ativistas francesas e pela feminista americana Kate Millett, promoveu uma manifestação contra o decreto, em 8 de março de 1979, e obrigou Khomeini a recuar. O véu só foi instaurado como lei em 1983. Naquela manifestação histórica, um repórter perguntou a Millett o que achava da posição do aiatolá em relação ao código de vestimenta islâmico. Millett, que posteriormente foi detida e expulsa do país, lançou um olhar indignado para a câmera e tachou o homem mais venerado do Irã de "machista".

Feita na esteira de uma revolução que seus famosos colegas intelectuais de esquerda tinham saudado como anti-imperialista, sua declaração foi presciente. Enquanto as escolas, os ônibus e os teatros do Irã foram segregados e as mulheres foram proibidas de atuar na maioria das carreiras de direito, medicina e engenharia, a misoginia era minimizada, tachada de nada mais que a petulância feminista de praxe. As mulheres perderam o direito de viajar e se divorciar. Nos tribunais, o valor do testemunho de uma mulher em um julgamento criminal caiu para metade do de um homem. Milhões de mulheres foram relegadas à cidadania de segunda classe, mas a intenção nociva de Khomeini ainda era medida pelo medo que ele suscitava no Ocidente, não pelo mal que causava às mulheres em seu país. Ele foi descrito como terrorista, fundamentalista e megalomaníaco religioso, mas raramente como misógino.

Hoje, a campanha Minha Liberdade Furtiva revela que a declaração acalorada de Millett anunciou a verdadeira ordem que se esconderia sob o véu do nome de República Islâmica: o apartheid de gênero. Disfarçado sob o manto do islã, o tipo de misoginia de Khomeini inspirou intenção nociva em outros da região, convertendo-se em um monstro onipresente e de muitas cabeças: na praça Tahrir, ele estuprou mulheres manifestantes; no Paquistão, disparou contra Malala; na Nigéria, roubou quase 300 meninas de uma escola.

Passadas décadas do governo do xá, as mulheres iranianas estão retomando furtivamente a liberdade que a monarquia certa vez lhes outorgou à força. Para esta geração, a meta não é abolir o véu, já que muitas iranianas ainda o abraçam, mas proteger legalmente a opção de usá-lo ou não. Até agora, seu espetáculo virtual bem-sucedido -com centenas de milhares de "curtir" no Facebook- e a cobertura da mídia não constituem uma vitória, pois uma vitória no ciberespaço é etérea.

Uma vitória real tem suas raízes numa campanha dotada de visão, valores, estratégia e uma identidade forte. Aquelas que combatem precisam ligar os pontinhos da irmandade feminina global, de modo a transcender o mero espetáculo e iniciar um movimento real. Os cidadãos do mundo real não podem limitar seu apoio a um simples sinal de positivo na mídia social. Uma nova geração de Kate Milletts precisa enxergar mais além da cortina de fumaça religiosa instalada pelos misóginos para mantê-la à distância. O pessoal ainda é político, sem dúvida. Mas agora também é global.

Roya Hakakian é autora de "Assassins of the Turquoise Palace". Envie comentários para intelligence@nytimes.com


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