Folha de S. Paulo


Análise: Mesmo se Obama quisesse intervir no Iraque, EUA estão cansados de guerra

Barack Obama é presidente dos Estados Unidos hoje em grande medida porque disse o seguinte em 2002: "Sou contra uma guerra estúpida. Sou contra uma guerra insensata... uma guerra baseada não na razão mas na paixão, não em princípios, mas na política."

Obama estava falando, é claro, de sua oposição à guerra com o Iraque. Suas declarações foram tragicamente prescientes, mas também politicamente úteis de uma maneira que ele dificilmente poderia ter imaginado na época. Mais de cinco anos mais tarde, essa declaração de oposição -em contraste com o voto de "sim", em apoio à guerra, de sua rival democrata, a senadora Hillary Clinton-se tornaria a diferença definidora entre os dois candidatos.

Hoje, porém, essas palavras são uma sombra que anuvia a Presidência de Obama no momento em que ele enfrenta a decisão difícil de voltar ou não a intervir militarmente nesse país torturado -e dificultar o avanço do EIIL, o grupo jihadista sunita radical que tomou controle de Mossul, a terceira maior cidade do Iraque. Não apenas podem desestabilizar ainda mais o governo iraquiano como podem arrastar o país para uma guerra, com xiitas de um lado e sunitas do outro.

Para os Estados Unidos, a ameaça é menos aguda, mas não deixa de existir. O potencial de o EIIL criar um refúgio seguro para outros jihadistas reflete de modo esdrúxulo a situação no Afeganistão antes do 11 de setembro. Na verdade, o argumento em favor de usar drones americanos contra o EIIL pode ser mais forte que o que está sendo usado hoje para justificar a política americana de drones no Paquistão e Iêmen.

O problema para Obama é que sua história com o Iraque faz com que seja incrivelmente difícil reagir a esse desafio muito concreto. Em 2002, quanto Obama se manifestou publicamente contra a guerra do Iraque, foi uma iniciativa que não chegou a parecer politicamente brilhante. Na época havia poucos democratas dispostos a assumir a mesma posição e ainda menos democratas que cogitassem candidatar-se a presidente.

Um ano depois do 11 de setembro, e com todas as vulnerabilidades históricas que os democratas, de tendência menos bélica, enfrentam há muito tempo na área da segurança nacional, apoiar a guerra, mesmo que a contragosto, parecia ser a posição política mais inteligente. O fato de seguir o caminho contrário virou o ingresso de Obama para a fortuna política.

Como candidato, ele prometeu várias vezes pôr fim à guerra. Foi uma empreitada facilitada por seu predecessor, George W. Bush, que em 2008 assinou com o governo iraquiano um acordo sobre o status das forças prometendo que todas as forças dos EUA sairiam do país até o final de 2011.

Mesmo assim, Obama alardeou constantemente o papel que exerceu em levar o conflito ao fim.

E, mesmo não tendo conseguido evitar sua própria guerra estúpida, embora menor, no Afeganistão, o conflito no Iraque servia para lembrar sempre a necessidade de os EUA evitarem o mesmo tipo de envolvimento militar -como se fosse a síndrome do Vietnã de uma nova geração. A política externa da Presidência de Obama tem sido, sob muitos aspectos, um esforço para exorcizar da psique americana os demônios do Iraque e a mentalidade que possibilitou essa guerra.

De fato, há apenas 15 dias, na Academia Militar de West Point, Obama lembrou aos cadetes que estavam se formando que "alguns de nossos erros mais custosos aconteceram não porque nos refreamos, mas porque nos mostramos dispostos a mergulhar de cabeça em aventuras militares sem ponderar adequadamente suas consequências. Discursos intransigentes muitas vezes geram manchetes, mas a guerra raramente corresponde aos slogans."

Mas essas palavras não são apenas um reflexo do que Obama pensa sobre guerra e paz: elas refletem os pontos de vista da nação que ele chefia, que está exausta e farta de quase 12 anos de guerra constante. Os americanos não querem participação alguma em outra guerra, e especialmente não no Iraque.

Portanto, mesmo que Obama quisesse intervir -e é difícil imaginar que ele tenha qualquer desejo de voltar atrás em relação àquela que talvez seja a mais importante conquista de política externa de sua Presidência–, seria pouco provável que isso contasse com apoio popular forte. Ironicamente, isso solaparia a modesta, mas não restrita visão de Obama quanto à liderança global dos Estados Unidos.

Esse é o legado mais útil e inesperadamente contraproducente do Iraque. Ele produziu uma percepção geral tão negativa da ação militar dos EUA que, mesmo quando o uso da força pode se justificar, as restrições políticas são, bem, restritivas demais.

Somando-se a isso os fracassos do próprio Obama no Afeganistão e na Líbia, será ainda mais difícil no futuro travar guerras estúpidas e insensatas. Mas que ninguém se engane: também será difícil travar guerras inteligentes.

Tradução de CLARA ALLAIN


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