Ao canonizar João 23 ao lado de João Paulo 2º, em cerimônia na manhã deste domingo, o papa Francisco manda um recado: o primeiro canonizado, reformador da Igreja e de rápido pontificado, tem a mesma importância histórica que o segundo, um dos mais populares e que ficou quase 27 anos à frente do Vaticano.
A cerimônia estava marcada para começar às 10h de Roma (5h de Brasília).
Foi Francisco quem aprovou a canonização de ambos em 2013 e escolheu a data conjunta para celebrá-los como santos da Igreja Católica, em uma histórica missa perante uma multidão que invadiu Roma nos últimos dias.
Em tempos de recentes escândalos, ligados sobretudo a abuso sexual cometido por padres e corrupção no Banco do Vaticano, não foi à toa a decisão do papa de querer o polonês João Paulo 2º dividindo as atenções com o italiano João 23, apontado como revolucionário por ter convocado em 1962 o Concílio Vaticano 2º, encontro ecumênico que abriu as portas da Igreja para o mundo moderno.
O papa Francisco sabe que a maioria da multidão que viajou a Roma está ali por causa do papa polonês, morto em 2005.
É visível pelo comércio local: a imagem de João Paulo 2º nas lembranças, como broches, terços e fotos, se sobrepõe à de João 23.
Para especialistas ouvidos pela Folha, é evidente a mensagem de hoje: é importante ser popular, como era João Paulo 2º e Francisco agora parece ser, mas é essencial buscar reformar e atualizar a Igreja, como fez João 23.
"Ele move o foco da canonização de João Paulo 2º em direção ao Concílio Vaticano 2º e também tenta dizer que uma santidade está acima das diferenças dos papados", diz o jornalista americano John Thavis, que cobriu o Vaticano por 30 anos e é autor do recém-lançado livro "Diários do Vaticano".
Estudioso daquele Concílio e autor de obras sobre os dois papas canonizados, o professor italiano Alberto Melloni avalia que Francisco quer passar a mensagem de que a reforma dos anos 1960 foi fundamental para a Igreja, apesar de alguma resistência de conservadores, entre eles o próprio Bento 16, que participou como especialista em teologia.
"O papa Francisco quer dizer: o Concílio foi, sim, muito bom, e seus resultados também. Vale lembrar que João Paulo 2º, embora mais conservador que João 23, foi o último papa que era bispo naquele encontro. Isso reforça que o Concílio é o ponto em comum e o principal recado da canonização", disse à Folha.
Naquela reunião, por exemplo, foram tomadas decisões importantes para o futuro da igreja. Aboliu-se a obrigação de as missas serem celebradas em latim, de o celebrante ficar de costas aos fiéis, além de se melhorar o diálogo com a população não católica (como protestantes, por exemplo) e não cristã, como os judeus.
Reformador, João 23 ficou conhecido como o "papa bondoso", pela atitude simples e simpática, estilo que o atual papa também tem buscado à frente da Igreja.
Ele morreu em 1963, ainda durante o Concílio, concluído dois anos depois por seu sucessor, Paulo 6º. A canonização hoje tem ainda um componente brasileiro, conta o professor Melloni.
"É a realização de um desejo que começou durante aquele concílio, quando o bispo brasileiro Hélder Câmara pediu a canonização de João 23 após sua morte, mas o pedido foi recusado por Paulo 6º", afirma.
EXCEÇÕES
Bento 16 foi responsável pelo início do processo de beatificação de João Paulo 2º (primeiro passo para canonização), ainda em 2005, logo depois de sua morte. Na época, abriu-se mão do prazo necessário de cinco anos após morrer o postulante para a abertura de um processo.
Naquele ano, João Paulo 2º teria curado do mal de Parkinson a freira francesa Marie Simon-Pierre Normand, após ela clamar por sua interferência. O segundo milagre teria ocorrido em 2011 –uma mulher da Costa Rica diz ter sido curada de um aneurisma cerebral.
Exceção também foi feita para João 23 se tornar santo: Francisco dispensou a comprovação de um segundo milagre e decidiu canonizá-lo pelas virtudes em vida. O italiano havia sido beatificado em 2000, por causa da cura de uma mulher em 1966 que teria problemas de estômago.