Folha de S. Paulo


Militares que chefiaram Revolução dos Cravos relembram o levante e lamentam crise

Já era noite quando Otelo Saraiva de Carvalho, 77, desceu do trem em Santa Apolônia (Lisboa). Chegava de mais um de inúmeros eventos a que foi convidado para celebrar os 40 anos da Revolução dos Cravos, completados hoje.

À porta da estação, um furgão distribuía comida. "Formou-se ali uma fila enorme de pessoas com um prato na mão. Não havia apenas sem-teto, mas também gente que era de uma classe social mais elevada e que já não tem posses. Não foi com essa intenção que se fez o 25 de Abril."

Divulgação/Associação 25 de Abril
Blindado cruza esquina das ruas Serpa Pinto e Garrett, no Chiado, em 25 de abril de 1974
Blindado cruza esquina das ruas Serpa Pinto e Garrett, no Chiado, em 25 de abril de 1974

Otelo foi um dos líderes do Movimento das Forças Armadas, que pôs fim a quase 50 anos de ditadura em Portugal. Era major quando assumiu o comando da revolução que culminou na rendição do premiê Marcello Caetano, sucessor de António Salazar.

O MFA tinha três objetivos quando trocou os quartéis pelas ruas: descolonizar, democratizar e desenvolver. "Estamos substancialmente melhores do que há 40 anos, mas talvez num ponto de involução", considera o comandante Ramiro Soares, 69. "A situação hoje é de um país bloqueado e com uma perspectiva futura muito negra."

Editoria de Arte/Folhapress

"O princípio fundamental dos capitães do MFA era elevar rapidamente o nível cultural, econômico e social do povo. Este governo faz exatamente o contrário", diz Otelo, para quem há "um regresso ao medo" no país devido ao desemprego, enquanto a crise gera "o enriquecimento cada vez maior dos banqueiros e da alta finança".

Para Vasco Lourenço, 71, presidente da associação dos militares que fizeram a revolução, "hoje o poder se comporta como herdeiro dos derrotados no 25 de Abril". "A democracia é formal. Há instituições que funcionam, mas no sentido de subtrair direitos. Não podemos considerar que saúde, ensino público, aposentadorias são regalias. São direitos adquiridos."

Por discordar da forma como o país é governado, pelo terceiro ano seguido, os militares da Associação 25 de Abril não irão às celebrações do aniversário da revolução no Parlamento português. Neste ano, para participar, exigiam o direito de falar no plenário, o que lhes foi negado.

GUERRA PERDIDA

A revolução foi consequência da insatisfação dos militares portugueses com as guerras coloniais, que já duravam 13 anos e consumiam 40% do Orçamento do país. Em 1974, Portugal enfrentava movimentos separatistas em Guiné-Bissau, Angola e Moçambique. Com pouco mais de 9 milhões de habitantes, o país chegou a manter mais de 100 mil homens no ultramar.

A iniciativa do movimento para depor o governo partiu sobretudo de capitães do Exército, jovens militares na linha de frente dos conflitos. Alguns acumulavam a quarta missão na África, numa guerra que viam como perdida.

O coronel Aprígio Ramalho, 68, embarcou rumo a Moçambique aos 20 anos. Conta que seu primeiro "murro no estômago" foi ver um negro agredido por uma autoridade local portuguesa após se queixar do preço pago pela companhia que monopolizava a compra do algodão. "Fiquei para morrer. Onde é que estou metido? É assim que a gente quer que a população esteja do nosso lado?"

A carreira militar em Portugal tinha estatuto de ensino superior e, por isso, muitos capitães vinham da classe média. Segundo Otelo, como ficavam aquartelados durante os estudos, viviam isolados em relação ao restante do país e tinham conhecimento político "quase zero."

Isso começou a mudar no campo de batalha, no contato com subalternos convocados pelo serviço militar obrigatório. "Como muitos outros capitães, eu procurava saber qual era o sentimento daquele jovem do povo, pobre, filho de agricultor", diz Otelo.

De 200 a 250 militares faziam parte do "núcleo duro" da conspiração, sem líder definido –António de Spínola, que assumiu após a queda de Caetano, não participara da organização do levante.

O plano desenhado por Otelo previa ocupação rápida e simultânea de dezenas de pontos estratégicos, como QGs, aeroportos e meios de comunicação. Enquanto isso, a coluna da Escola Prática de Cavalaria de Santarém, chefiada pelo capitão Salgueiro Maia, marcharia pelo centro de Lisboa, servindo de isca às forças governamentais.

Apesar da complexidade, a operação teve um quê de sorte, de improviso e até de certa ingenuidade. Em Figueira da Foz, o instrutor alterou o programa de estudo dos recrutas para que aprendessem a tempo a pontaria direta, único tipo de tiro que seria útil numa revolução. A equipe responsável por ocupar o Rádio Clube Português trancou a chave dentro do carro e, com ela, armas e fardas.

Um capitão solitário sustentou por meia hora o blefe de que a base aérea militar estava cercada, já que a companhia que tomaria o aeroporto errou o caminho e se atrasou. Salgueiro Maia pediu reforço para prender o ministro do Exército, já que era apenas capitão e "um oficial general só poderia ser preso por, pelo menos, um major".

"Em uma revolução, em que está tudo virado do avesso, há um capitão que tem a possibilidade de prender o ministro do Exército e não cumpre a missão por causa do regimento de disciplina militar", diverte-se Otelo.

Segundo os capitães, o maior mérito do movimento foi a ação simultânea. Cada batalhão saiu para cumprir sua missão sem saber se os outros também tinham aderido. A senha do levante foi a execução da música "Grândola, Vila Morena", hoje hino dos protestos anticrise.

O DIA SEGUINTE

Apesar das críticas ao governo do Partido Social Democrático, os Capitães de Abril consideram que a situação atual tem raízes históricas e chegam a fazer mea-culpa.

"Nós não soubemos preparar o dia seguinte", afirma Vasco Lourenço, que estava nos Açores no dia do levante, recém-transferido devido a suspeitas de conspiração.

"Quando voltei a Portugal e cheguei ao posto de comando, tive a sensação de que estava a entrar em uma guerra que não era a minha." Muitos dos militares que assumiram posições relevantes não tinham participado do planejamento do movimento.

Embora o 25 de Abril tivesse forte caráter de esquerda, não havia coesão dos militares em torno de uma ideologia como houve quanto à vontade de encerrar a guerra colonial. Os dois anos seguintes, no contexto da Guerra Fria, foram de instabilidade e ameaças de contragolpe, dos comunistas à extrema direita.

As contradições "tornaram impossível uma revolução levada a cabo", diz Otelo, que defendia uma democracia direta, de poder popular –ele é identificado como de extrema esquerda, mas adversário do Partido Comunista Português. "O povo faz coisas admiráveis, desde que tenha por cima alguém a protegê-lo."

É por não existir hoje uma estrutura que garanta essa proteção que Otelo não acredita em um novo 25 de Abril, apesar da insatisfação popular. "Todos os dias, quando me reconhecem na rua, vêm falar comigo: 'Ó, camarada, temos que fazer um outro 25 de Abril!' Temos quem? Quem é que faz? É um desgosto, uma desilusão. Tivemos uma oportunidade magnífica."

Para Lourenço, falta "um clique". "É difícil às multidões tomarem elas as iniciativas. Vai ter que haver alguma coisa." Mas agora, diz o coronel, não haveria flores.


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