Folha de S. Paulo


Sob o domínio da Rússia, vida na Crimeia se torna caótica

Depois que a Rússia anexou a Crimeia praticamente do dia para a noite, os burocratas russos que cuidam dos passaportes e licenças de residência passaram a ocupar o mesmo edifício antes usado por seus predecessores ucranianos, e Roman Nikolayev espera diante dele a cada dia pela resposta a uma pergunta aparentemente banal.

Sua filha e neta haviam acabado de chegar da Ucrânia quando de repente se viram em um país diferente, e ele quer saber se elas podem se tornar residentes legais. Mas não consegue entrar no edifício para obter uma resposta porque tem a senha nº 4.475 na lista de espera de passaportes.

Um máximo de 200 pessoas são admitidas a cada dia, dentre a multidão que espera diante do portão de ferro alto e enferrujado.

James Hill/The New York Times
Multidão se reúne do lado de fora de prédio do governo para tirar passaporte russo em Simferopol
Multidão se reúne do lado de fora de prédio do governo para tirar passaporte russo em Simferopol

"Eles criaram linhas de resposta telefônica, mas ninguém atende", disse Nikolayev, um esbelto administrador de transportes aposentado que ostenta uma barba ruiva grisalha.

"Antes tínhamos um país bastante bem organizado... a vida era fácil", ele diz, com um suspiro. Depois, em espaço de duas semanas, um país se tornou outro. Ele comenta: "Eto bardak", usando a expressão russa que significa literalmente "que bordel" e figurativamente que "isso é um caos".

Um mês depois da anexação relâmpago, os moradores dessa península no Mar Negro se encontram menos vivendo em um país diferente, a Rússia, do que vivendo em estado de perpétua confusão. Declarar a mudança, eles vêm descobrindo a cada dia, foi muito mais fácil do que implementá-la.

A caótica transição surge em meio à evolução de tensões na Ucrânia oriental, uma região vizinha, cujos possíveis desfechos incluem uma repetição do acontecido na Crimeia.

James Hill/The New York Times
Rede de lanchonetes McDonald's fechou as portas na Crimeia após anexação da região pela Rússia
Rede de lanchonetes McDonald's fechou as portas na Crimeia após anexação da região pela Rússia

Poucas instituições funcionam normalmente, hoje na Crimeia. A maioria dos bancos está fechada. Os cartórios de registro de imóveis também. Os casos judiciais foram postergados indefinidamente. As importações de comida estão desorganizadas. Algumas empresas estrangeiras, como o McDonald's, fecharam.

Outras mudanças são mais sinistras. "Unidades de autodefesa" que não contam com qualquer autorização oficial evidente varrem as estações de trem e outros pontos de ingresso na região, realizando inspeções repentinas.

Drogados, ativistas políticos, homossexuais e até mesmo sacerdotes ucranianos - categorias de pessoas censuradas pelo governo russo ou pela Igreja Ortodoxa Russa - estão entre os grupos com motivos mais evidentes para temer a vida sob um governo muito menos tolerante.

A realidade é que a mudança de controle nacional causou desordem em virtualmente todos os aspectos da existência. Os moradores da Crimeia se veem necessitados de coisas novas a cada - carteiras de habilitação e placas de carro, seguros e receitas médicas, passaportes e fichas escolares. Os russos que chegaram à Crimeia em grandes números em busca de oportunidades imobiliárias e de outra ordem se veem igualmente frustrados diante dos obstáculos logísticos e burocráticos.

"É necessária uma reconstrução radical de tudo, e por isso esses problemas estão se multiplicando", disse Vladimir Kazarin, professor da Universidade Nacional Taurida. (O nome da universidade, que deriva da História da Crimeia como região de assentamento grego, deve ser mudado.) "Serão necessários dois ou três anos para que esse caos se resolva, mas temos de continuar vivendo enquanto isso".

Em nível mais profundo, alguns moradores da Crimeia enfrentam questões fundamentais de identidade, um processo bem mais emaranhado do que uma simples substituição de passaportes.

"Não posso ordenar a mim mesma que deixe de amar a Ucrânia e passe a amar a Rússia", diz Natalia Ishchenko, outra professora da universidade que tem raízes em ambos os países. "Sinto que meu coração está partido em duas metades. Isso é realmente difícil em termos psicológicos".

O governo da Crimeia desconsidera todas as dúvidas e queixas.

"Besteira!", diz Yelena Yurchenko, ministra do Turismo e Lazer e filha de um almirante russo que escolheu a Crimeia como moradia ao se reformar. Essas são "questões pequenas que podem ser resolvidas à medida que aparecerem", ela disse, acrescentando que "podem resultar em alguma tensão para as pessoas preguiçosas, que não querem progredir".

Legiões de funcionários do governo russo acorreram à Crimeia para ensinar aos moradores como ser russos. No turismo apenas, diz Yurchenko, a Crimeia precisa de assessoria sobre as leis russas, sobre marketing, sobre questões de saúde e sobre como lidar com a mídia.

"Você consegue imaginar quantas pessoas precisam trabalhar aqui apenas para esse setor?", ela declarou em entrevista, explicando por que nem mesmo o seu ministério consegue ajudar alguém a encontrar um quarto de hotel em Simferopol. "Temos também os transportes, a economia, a construção, medicina, a cultura e muitas outras coisas".

Em Dzhankoy, cerca de 90 quilômetros ao norte da capital da Crimeia, Edward Fyodorov, 37, vende sorvete desde os nove anos de idade. Esse trabalho por fim o tornou proprietário de uma frota de 20 caminhões frigoríficos. Ele costumava importar toda espécie de produtos alimentícios da Ucrânia, o que inclui pães e ingredientes de salada congelados para a McDonald's, e mais diversos bens para os supermercados Metro e outras 300 lojas de alimentos.

Os negócios caíram em 90%, ele diz. Os cinco a sete caminhões carregados que ele movimentava a cada dia se reduziram a um por semana. Ele está procurando fornecedores russos, mas os produtos custam cerca de 70% mais e as questões de transporte são complicadas.

A Crimeia não faz fronteira terrestre com a Rússia, que fica a 550 quilômetros de distância, do outro lado da Ucrânia. A única linha de balsas que atravessa da Rússia para a Crimeia o faz de um canto obscuro do Cáucaso. Uma dispendiosa ponte que o Kremlin prometeu construir ainda demorará anos a sair da prancheta.

"É impossível fazer quaisquer planos ou previsões", disse Fyodorov, expressando uma queixa quase universal. Mesmo que ele encontrasse trabalhos a realizar, o fato de os bancos estarem fechados tornaria os pagamentos impossíveis.

Longas filas se formam diante dos poucos bancos russos que estão funcionando. (Alguns moradores da Crimeia que esperam nessas filas recorreram a uma tática da era soviética e se apresentaram como voluntários para organizar longas listas definindo a ordem de precedência na fila - em uma repartição de passaportes, a lista tem mais de 12 mil nomes.)

O presidente russo Vladimir Putin anunciou na quinta-feira que espera ter bancos russos funcionando normalmente na Crimeia dentro de um mês.

O Kremlin, que anunciou planos para tornar a região um polo de cassinos, estabeleceu um prazo oficial até 1º de janeiro de 2015 para a transição. O custo inicial alocado a "todos os programas da Crimeia" este ano será de US$ 2,85 bilhões, segundo Putin, mas dadas as promessas do Kremlin quanto a tudo, de infraestrutura a dobrar as aposentadorias, o custo final da anexação deve ser muito mais alto que isso.

Os preços são muitas vezes cotados tanto em hryvnias ucranianas quanto em rublos russos, mas a taxa de câmbio flutua constantemente. Mesmo as mais simples transações, como pagar uma corrida de táxi, requerem o uso da calculadora.

As vendas de imóveis, a despeito da disparada na demanda dos russos que desejam construir dachas (casas de férias) à beira-mar, está travada porque os cartórios estão fechados.
É difícil computar o número muito alto de ramos do governo que não estão funcionando.

Os casos judiciais estão congelados porque os juízes não sabem que leis aplicar. Procedimentos essenciais como testes de ADN agora precisam ser realizados em Moscou, e não em Kiev.
Um guarda de trânsito confessou que não fazia ideia de que lei aplicar - ele estava estudando duas horas por dia para aprender as leis russas de trânsito.

Os advogados, cuja formação profissional se tornou irrelevante com a mudança, estão vasculhando os manuais jurídicos russos, e tropeçando em termos desconhecidos.

"Não poderei competir com os jovens advogados que chegarem da Rússia com diplomas em lei russa", diz Olga Cherevkova, que estava fazendo doutorado em leis ucranianas de saúde.
Ela está considerando se deve abandonar a terra em que nasceu, a terra que dá origem a sua identidade.

"Talvez eu deva fazer as malas e me mudar para Miami", ela brinca, e depois segura a risada. "Estou rindo, mas não é piada, na verdade. Quero viver em um país livre. Ainda assim, para mim, como advogada, é interessante, se bem que um pouco estranho".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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