Folha de S. Paulo


Meninas do Maláui enfrentam pobreza e casamentos arranjados para ir à escola

A cada quarta-feira, Shakira Yakiti se reúne com um grupo de meninas em risco na escola Nampimgunja, em Mangochi, um distrito rural do Maláui. O Girls Club de que elas participam organiza visitas às casas de meninas que abandonaram a escola para casar, trabalha com mães adolescentes a fim de encorajá-las a retornar aos estudos, faz contato com diretores de escola para garantir que as alunas de retorno sejam bem recebidas, e oferece apoio social a meninas que enfrentam sérios desafios em um país no qual a pobreza é endêmica, o acesso ao ensino secundário é significativamente pior para as meninas do que para os meninos, e as meninas rotineiramente se casam e têm filhos ainda na adolescência.

Yakiti diz que "sempre que essas meninas voltam, nós nos reunimos como clube para discutir que problemas elas estão enfrentando e que problemas as levaram a deixar a escola. Às vezes até levantamos dinheiro para ajudá-las se o problema é a pobreza, para que possam comprar sabonete e coisas assim. Ficamos sempre orgulhosas quando vemos uma menina retornar à escola".

Yakiti é uma força da natureza, esbelta, dotada de uma postura elegante e falando com a eloquência fácil de alguém experiente na política. Quando fomos apresentadas, ela estava conversando com uma equipe de trabalhadores de organizações assistenciais, e com jornalistas estrangeiros que estendiam agressivamente os microfones em sua direção. Mas ela respondia às perguntas de maneira fluida e coerente, oferecendo comentários incisivos e encorajando as integrantes do Girls Club a revelar suas histórias. No final do evento, todos concordamos que seu talento como organizadora de base e seu poder de persuasão apontavam para um belo futuro na política.

Ah, lembrei-me de mencionar que ela só tem 13 anos?

Conheci muitas outras meninas como Yakiti em todo o Maláui: inteligentes, persistentes e dedicando grande esforço, em suas comunidades, a melhorar a vida das meninas e mulheres. Mas também conheci meninas cujas vidas pendem por um fio, desesperadas por ir à escola mas enfrentando imensas barreiras. Um exemplo é Ethel, cujos pais eram pobres demais para comprar sabão e permitir que ela lave suas roupas, e portanto nem podiam pensar em comprar o uniforme de que ela precisa para a escola (o Girls Club passou a lhe fornecer sabão e a encorajou a voltar aos estudos, e Ethel está matriculada).

Há também Chrissa, que engravidou na adolescência e é mãe de gêmeos. O homem que a engravidou tem 21 anos e deixou a namorada e os filhos porque encontrou um emprego com salário melhor na África do Sul. Ela voltou à escola, apesar de ter sido rejeitada por algumas colegas. "Não me incomodo que riam de mim", disse. "Vou continuar a aprender".

Outro exemplo é Christie, cuja mãe abandonou a família, deixando à menina a responsabilidade de criar seis irmãos, em imensa pobreza. A única saída para ela foi o casamento aos 14 anos, a mesma idade com que teve seu primeiro filho. Christie deixou a escola ao final da oitava série e quer voltar a estudar, mas ainda não encontrou um meio.

Elas enfrentam barreiras, tanto culturais quanto práticas. Quando a renda familiar é limitada, pagar pela escola de um filho homem pode parecer um investimento melhor do que pagar estudos para uma menina. As normas culturais promovem o casamento precoce, e a falta de acesso a educação sexual abrangente e a métodos de controle de natalidade significa que a gravidez é comum entre as jovens - mais de dois terços das mulheres do Maláui têm filhos antes de seu 20º aniversário. A gravidez na adolescência acarreta sérios riscos para a mãe e a criança, e as mortes de bebês em seu primeiro mês de vida são entre 50% e 100% mais altas quando a mãe tem menos de 20 anos do que quando ela é mais velha. As meninas que engravidam apresentam maior probabilidade de casar, e quando uma menina se casa ela tende a deixar a escola.

As meninas também enfrentam o desafio prático de como chegar à escola em um país com população em larga medida rural. Em outra das escolas do distrito de Mangochi, a diretora Molombo Basuro disse que alguns alunos caminham até 16 quilômetros para chegar a uma escola sem carteiras, com número insuficiente de livros de exercício, disponibilidade limitada de água e classes com até 65 alunos. As escolas não oferecem alojamentos, e por isso 32 meninas que moram longe demais do local dormem em uma das salas de aula.

Problemas aparentemente simples se tornam barreiras substanciais à educação das meninas. A falta de acesso a sabonetes e absorventes higiênicos significa que as meninas perdem aulas quando estão menstruadas. A falta de carteiras torna difícil para elas se acomodar confortavelmente e prestar atenção à aula, porque os uniformes são vestidos e as meninas são pudicas.

BICICLETAS DE MANGOCHI

Mas elas continuam a frequentar a escola, em larga medida devido a esforços inovadores de membros da comunidade e à dedicação das meninas mesmas, em projetos financiados principalmente por organizações internacionais de assistência. Algumas das meninas na escola dirigida por Basuro têm bicicletas, compradas com ajuda de um programa das Nações Unidas operado pela Unicef. As bicicletas significam que as meninas podem chegar à escola não só mais rápido como de forma mais segura - caminhar longos quilômetros em estradas rurais as expõe a riscos de assédio e agressão sexual. Outras verbas da Unicef são usadas para comprar coisas como sabonetes e absorventes higiênicos, para pagar mensalidades escolares e para a aquisição de livros escolares.

Graças à corrupção endêmica, porém, as meninas que estão fazendo tudo que podem para ficar na escola podem ver distensão ainda maior dos poucos recursos de que dispõem, ou mesmo perder o acesso a eles.

O problema é um escândalo conhecido como Cash Gate, envolvendo funcionários do governo malauiano acusados de roubar milhões de dólares em verbas assistenciais, em um país no qual mais de 40% do orçamento é coberto por doações internacionais. Em resposta, muitas grandes organizações doadoras ocidentais estão retendo verbas até que o governo malauiano seja capaz de provar que os fundos serão usados devidamente. É uma decisão dura, e não necessariamente injusta - por que canalizar milhões de dólares a um sistema que se provou tão corrupto?

E no entanto, quem sairá perdendo com ela serão meninas como Yakiti, Chrissa e Christie.

POBREZA

Não existe solução fácil. O governo malauiano tem diversas opções, entre as quais permitir que auditores internacionais avaliem o escopo e profundidade da corrupção. Mas os doadores precisam tomar decisões duras: continuar fornecendo verbas e assim, na prática, bancar funcionários corruptos sem que estes sofram consequências, ou retirar a assistência sabendo que quem sofrerá mais com isso serão os muitos malauianos que precisam de serviços essenciais como saúde e educação?

Quase três quartos dos malauianos são extremamente pobres, e vivem com menos de US$ 1,25 ao dia. Vezes sem conta, as meninas e mulheres com quem conversei enfatizaram que os programas mais efetivos eram os mais locais - aqueles que foram desenvolvidos sob a liderança das meninas, de membros da comunidade, de prestadores de serviços de saúde e de organizadores de base, e não de forasteiros chegados de paraquedas. Mas é preciso dinheiro para implementar efetivamente os programas locais.

O governo malauiano precisa agir, e permitir pleno acesso aos auditores internacionais para uma investigação. Mas os doadores não deveriam jogar o bebê fora junto com a água do banho. E meninas como Yakiti, por mais esforçadas e inteligentes que sejam, são apenas crianças - bebês que merecem apoio e proteção.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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