Folha de S. Paulo


Análise: O que está em jogo é o direito de um país decidir seu destino

Barack Obama alertou a Rússia de que "haverá custos" na hipótese de uma intervenção militar na Ucrânia. Nas horas seguintes, forças russas assumiram, efetivamente, o controle da cidade portuária de Sebastopol e de Simferopol, a capital da Crimeia.

A Casa Branca debruça-se sobre as opções de cancelar uma visita presidencial a Moscou, suspender negociações de um tratado comercial, excluir a Rússia do G-8. "Custos"? Deslustrada na Síria, a palavra de Obama não valerá uma gargalhada se Vladimir Putin conseguir destruir a revolução ucraniana.

"Toda a Crimeia para mim; o restante da Ucrânia para vocês", está dizendo Putin, na interpretação dos otimistas. Se fosse assim, pouco se poderia fazer, pois a Crimeia é militarmente indefensável.

Mas Putin está, realmente, seguindo a cartilha georgiana. Na Geórgia, em 2008, Moscou ocupou as regiões secessionistas da Ossétia do Sul e da Abkhazia para estabelecer limites à soberania do país vizinho. A operação militar na Crimeia articula-se com movimentos separatistas no leste ucraniano e prenuncia iniciativas de desestabilização do novo governo em Kiev.

Os russos podem estrangular as exportações agrícolas ucranianas e elevar a níveis insuportáveis os preços do gás natural importado pela Ucrânia.

"Se a Ucrânia não pode ser minha, não será de ninguém" - essa é, de fato, a declaração geopolítica de Putin, que viu se desmanchar seu sonho de uma União Euroasiática quando o governo cleptocrático de Viktor Yanukovich foi derrubado por uma insurreição popular. O chefe do Kremlin está dizendo que a Ucrânia não pertencerá à União Europeia ou à OTAN. Que a Guerra Fria não terminou, mas apenas conheceu uma alteração em suas fronteiras geopolíticas. Que a Cortina de Ferro moveu-se para o leste, mas não desapareceu. Contudo, para ganhar o estatuto de verdade, a mensagem de Moscou está pendente da atitude de Washington.

A Frota do Mar Negro, baseada em Sebastopol, é uma força combatente de segunda linha. Os russos podem, com seus navios e marines, assustar inimigos frágeis ou assenhorear-se das principais cidades da Crimeia, mas nada além disso. Putin "sabe perfeitamente que nenhum de nós quer uma guerra", explicou Fiona Hill, alta conselheira americana de inteligência durante a crise da Geórgia, antes de indagar: "O que podemos fazer?" A Ucrânia não é a Geórgia, Fiona.

O presidente pode, discretamente, fazer chegar a Moscou o aviso de que não tolerará uma operação militar russa fora dos limites da Crimeia, calçando tais palavras com o deslocamento de um grupo naval de combate para o Mar Negro e de forças terrestres e aéreas da OTAN para a fronteira polonesa-ucraniana. Putin também não quer uma guerra - ao menos, não uma guerra que não possa vencer facilmente.

O nome do jogo é Ucrânia, não Crimeia. O que está em jogo é o direito de uma nação europeia decidir seu destino. Moscou aposta no estrangulamento da Ucrânia, por meio da desestabilização política e econômica. Em 1956 e 1968, o Ocidente não tinha alternativas senão assistir à supressão das revoluções húngara e tcheca pelo Pacto de Varsóvia. O cenário, hoje, é outro. Os EUA e seus aliados europeus têm os meios de proteger a soberania ucraniana oferecendo ao país um mini-Plano Marshall e um caminho de acesso à União Europeia. Sem gestos ousados como esses, uma nova Cortina de Ferro separará a Europa de uma Grande Rússia restaurada.

Odessa, situada a 350 quilômetros da Crimeia, é a cidade ucraniana que assistiu ao levante do Potemkin, nas jornadas revolucionárias de 1905. Seu símbolo é a gigantesca escadaria de granito, inaugurada em 1841, que a conecta ao porto. Novamente, como na célebre cena de "O Encouraçado Potemkin", de Sergei Eisenstein, um carrinho de bebê está fora de controle, descendo os degraus, rumo à morte certa. O bebê se chama revolução ucraniana e só pode ser salvo pelo homem que ocupa a Casa Branca.

DEMÉTRIO MAGNOLI É sociólogo e colunista da Folha, integra o Grupo de Análises da Conjuntura Internacional da USP (Gacint-USP).


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