Folha de S. Paulo


Sem representação política, é impossível resolver protesto, diz analista

Governos dos mais variados países estão fracassando no atendimento das necessidades de suas populações e no combate às desigualdades. "A captura generalizada de processos governamentais por elites é tão dominante que elas não se veem compelidas a distribuir a riqueza", diagnostica Sara Burke, analista política da Fundação Friedrich Ebert ligada ao Partido Social-Democrata alemão (SPD), em Nova York.

Burke é coautora, com Isabel Ortiz, Mohamed Berrada e Hernán Cortés, do relatório "Protestos Mundiais 2006-2013" (http://policydialogue.org/files/publications/World_Protests_2006-2013-Final.pdf), da FES e da Universidade Columbia, que mapeou 843 eventos de contestação em 87 países. A maior parte (488, ou 58%) se batia por justiça econômica e contra medidas de austeridade.

Seu auge se deu a partir de 2010, após a crise econômico-financeira de 2008-2009. A solução para essas demandas, contudo, não depende tanto da retomada do crescimento quanto de avanços na representação política, de uma "democracia real" que dê voz e ouvidos, de fato, à maioria.

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Sara Burke é analista política e trabalha na Fundacao Friedrich Ebert em Nova York
Sara Burke é analista política e trabalha na Fundacao Friedrich Ebert em Nova York

"Vivemos numa era não de limites fiscais reais, mas de falta de disposição para taxar aqueles que mais facilmente podem pagar e daí usar essa receita para financiar necessidades sociais", diz Burke.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista realizada por e-mail.

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Folha - O relatório indica protestos por justiça global como o grupo de demandas que mais crescia em 2013. Seria equivocado presumir que eles arrefeceram desde então?

Sara Burke -?Estamos todos muito atentos quanto ao que foi notícia nos últimos dias e semanas na Ucrânia, na Venezuela, na Tailândia, no Egito e alhures, onde nacionalismos de vários tipos claramente desempenham um papel enorme. Isso poderia nos levar a perguntar se está arrefecendo a onda de protestos organizados globalmente, ou aqueles que têm por alvo específico as questão globais, mas nada posso dizer de definitivo sobre isso.

Lembre que um episódio de protesto é em geral muito mais que um comício ou uma marcha isolados - um evento que tem lugar num único dia. Um episódio de protesto é, com mais frequência, um processo corrente e quase invisível de organização, construção de redes e coalizões, de produção de visões estratégicas e decisões que então se expressam em um dramático evento de protesto.

Os protestos na Ucrânia e na Venezuela não parecem nascer de queixas e demandas por justiça econômica ou contra austeridade, mas antes da segunda razão mais comum em seu levantamento, o fracasso da representação política e de sistemas políticos. No Brasil, os protestos começaram com a tarifa dos ônibus e se tornaram mais e mais políticos, contra a corrupção. Há aí uma tendência, ou uma progressão?

É importante entender a relação entre o fracasso de governos em providenciar o que as pessoas necessitam da economia - em termos de empregos com salários que permitam sobreviver, serviços públicos essenciais, impostos justos e alimentos, combustíveis e moradias a preços módicos - e a necessidade de serem de fato ouvidas sobre como as decisões econômicas são tomadas e para quem são tomadas. Sem representação política que possa ser responsabilizada - ou seja, participação democrática e limites ao poder das elites - é impossível resolver o problema do grande acervo de demandas econômicas que leva as pessoas a protestar.

Editoria de Arte/Folhapress

Isso vale para a Ucrânia?

Para entender o que está acontecendo, não se trata de determinar se os protestos estão relacionados com justiça econômica, de um lado, ou com o fracasso da representação política, de outro. São as duas coisas! Uma das razões pelas quais Yanukovich não assinou acordos políticos e comerciais com a Europa em novembro é que ele não se dispunha a implementar o que seriam medidas dolorosas e outras reformas exigidas pelo FMI em troca de empréstimos e ajuda. Ele não se dispunha a impor a austeridade - não porque fosse um cara legal, que se importava com o bem-estar dos cidadãos da Ucrânia - mas porque isso enfureceria a população. Ele se voltou então para a oferta de ajuda da Rússia, e isso enfureceu as pessoas, também. Por quê?

Veja, não é um alternativa, ou problema econômico, ou crise política: é todo o sistema político e econômico que não responde às necessidades das pessoas. No estudo nós encontramos isso em todos os tipos de regimes políticos, dos autoritários, como o da Ucrânia, às democracias representativas, velhas e novas.

Pelo menos na Ucrânia o que começou como protesto degenerou em conflito aberto próximo de uma Guerra civil, como na Síria. O Egito viu sua primavera retroceder ao inverno do antigo regime. É como se faltasse impulso, ou organização, aos movimentos de base para derrubar de vez o regime. Há exemplos para contradizer essa conclusão pessimista?

Um dos grandes desafios para os movimentos de protesto é como obter sucesso nos seus objetivos mais ambiciosos, como criar uma estratégia para chegar a uma transformação duradoura e sustentável. Isso fica mais complicado - na Ucrânia e na Venezuela, como na Síria - com o fato de as potências externas usarem o confronto local para praticarem suas guerras por procuração.

Qual foi o real significado das declarações vazadas que haviam sido feitas pela subsecretária de Estado dos EUA Victoria Nuland? Foi dizer "foda-se a União Europeia"? Foi só o que se cobriu nos EUA, isso e o fato de ter sido vazada pela Rússia. Mas será que o significado real não foi que sua conversa com o embaixador americano na Ucrânia, Geoffrey Pyatt, revelava o quanto o governo dos EUA estava tentando direcionar os protestos para seus próprios objetivos, para aquilo que alguns alegam ser um golpe de Estado contra um presidente eleito e não para uma solução democrática?

Pode-se argumentar que as medidas de austeridade foram de alguma maneira assimiladas desde 2011 e perderam apelo para protestos. Não houve os desastres esperados em Portugal, na Grécia ou na Espanha. A Europa está mal, mas não mais em crise aguda, os EUA retomaram o rumo do crescimento e a China parece estar tomando a trilha do crescimento mais lento sem distúrbios sociais, pelo menos até aqui. Estamos a caminho de uma normalização dos protestos pelo globo?

Os protestos contra a austeridade na Europa foram maciços, mas também predominantemente liderados por atores políticos tradicionais, como as grandes confederações sindicais na Espanha, na Grécia e na Itália, que têm tantos vínculos próximos com os partidos políticos desacreditados que elas mesmas se tornam inconfiáveis. Além disso, virtualmente nenhum ganho foi obtido com esses protestos maciços, portanto eu diria que elas - e não necessariamente a própria austeridade - perderam apelo.

Também, embora seja consenso entre os "oráculos" da finança e conselheiros que formatam as políticas que a Europa, em certa medida, mas em especial os EUA, estão retomando o crescimento, quem se beneficia dessa recuperação? Nos EUA, dados recentes mostram que o 1% superior de renda capturou 95% dos ganhos dos primeiros anos de recuperação da crise econômica recente! É consenso entre esses oráculos da finança no Goldman Sachs e outros lugares que estamos em uma nova era de volatilidade econômica global e precisamos nos preparar e nos acostumar com ela. O 1% se preparou sufocando a regulação e criando precedentes para socializar os resultados das crises enquanto privatizam os ganhos.

A dominância de certos tipos de protesto no cenário global durante certo período envolve raízes comuns, algo como uma globalização da insatisfação? Ou é apenas a somatória fortuita de realidades sociopolíticas locais, não necessariamente interligadas?

Esta questão exige mais dados e novas pesquisas. No entanto, o que sabemos ao certo é que protestos têm lugar em países com raízes comuns em uma economia global que tende - em especial quando deixada sem regulação e supervisão robustas no plano nacional ou internacional - na direção de desigualdades de renda, riqueza e grupo. Esse problema é exacerbado por uma crise generalizada de representação política. O resultado é que todos os tipos de arranjos políticos existentes carecem da capacidade de lidar com esses problemas de modo pacífico, justo e ordenado.

"Democracia real", como categoria isolada, é a demanda mais prevalente nos protestos, em 218 de 843 casos (26%). Isso implica reconhecer que procedimentos democráticos formais, como eleições livres e um Judiciário independente, não bastam para acarretar justiça social?

Por razões inteiramente consistentes com os achados sobre as principais queixas e demandas das pessoas, os principais alvos dos protestos são "o governo"(usualmente os governos nacionais) e "o sistema" (o sistema político-econômico no qual o governo opera e que ele mantém). Mas veja o que vem depois disso: corporações, o FMI, as elites, a UE, finanças, o BCE, corporações armadas e o livre-comércio! Essa lista revela um nexo perturbador entre governos que fracassam em representar adequadamente suas populações e elites privadas corporativas e financeiras que contornam processos políticos oficiais para exercer influência, assim como instituições financeiras internacionais que promovem políticas que espicaçam as populações e as forças militares e policiais que as reprimem quando se agitam - todos vistos sob a óptica de manifestantes como cúmplices da manutenção de um sistema econômico que produz e reproduz desigualdade e privação.

Esse é um traço comum a vários países?

Encontramos isso em sistemas políticos considerados autoritários, como o do Irã, onde a Revolução Verde de 2009 respondeu ao ataque do regime contra manifestantes expandindo-se para uma movimento social que pedia as liberdades civis originalmente esposadas pela Revolução Islâmica: oportunidade econômica, mobilidade social, liberdades básicas, justiça social, participação política, respeito e dignidade para o povo iraniano. Encontramos também expressão forte disso nas assembleias gerais de milhares realizadas em várias ocupações como a da praça Tahrir, no Cairo, porta do Sol, em Madri, praça Sintagma, em Atenas, parque Zucotti, em Nova York, entre outras. Esses movimentos se tornaram laboratórios para experimentar novas geometrias da participação direta nas tomadas de decisão e na fixação de agendas. Mas isso não é tudo o que está envolvido nessa demanda por democracia real: há também evidência de que muitas iniciativas para criar o que se pode chamar de "estruturas de responsabilização pública" para fazer o trabalho da força policial ausente (como no Egito em 2011).

Muitos protestos que nascem da insatisfação com a falta de progresso na redução de desigualdades originam movimentos com pouco foco, cujas demandas abrangem coisas demais, numa época de limitações fiscais, e que tendem a conseguir pouco ou nada e depois arrefecem. Seria essa uma boa explicação para o fato de 63% de todos os protestos terminarem em fracassos?

O Brasil fez progressos históricos contra a desigualdade, mas não foi o suficiente para satisfazer nem a necessidade de serviços públicos e custo de vida adequados, nem suas aspirações por mobilidade real. Como afirmamos no estudo, o conjunto de políticas necessárias para enfrentar as insatisfações que descobrimos são tão numerosas e inter-relacionadas que ultrapassam a capacidade de arranjos políticos existentes para lidar com elas me modo justo, pacífico e ordenado.

Creio que a questão não é vivermos numa era de limitações fiscais, mas numa época em que a captura generalizada de processos governamentais por elites é tão dominante que elas não se veem compelidas a distribuir a riqueza. Vivemos numa era não de limites fiscais reais, mas de falta de disposição para taxar aqueles que mais facilmente podem pagar e daí usar essa receita para financiar necessidades sociais. Mais uma vez, esses são alguns dos efeitos políticos da desigualdade de renda e de riqueza.

Vemos no Brasil e outros países uma tendência crescente para ações violentas cometidas por grupos minoritários como os "Black blocs", que aliás contribuem para afastar cidadãos de classe média dos protestos. Por que o estudo não levou isso em conta?

Analisamos boa quantidade de protestos que empregaram métodos violentos, incluindo mais de cem conflitos de vários tipos, que incluíam violência contra pessoas (alvos dos protestos) e também a destruição de propriedades e saques, que eu não considero uma forma de violência, mas muitos analistas consideram. O que afirmamos no trabalho é que não lidamos com protestos quando eles se tornam conflitos armados abertos, como na Síria e na Líbia. Escolhemos fazer isso em parte porque envolveria mais pesquisa e de um tipo diferente do que poderíamos oferecer neste estudo preliminar particular. Não foi por falta de interesse, longe disso!

Houve muita cobertura de imprensa para a revolta de 2011-2013 no Egito e o golpe subsequente, mas os protestos de 2010 no Quirguistão resultaram em 30% mais mortes. Há uma distorção na cobertura dos conflitos?

Notamos uma distorção - em geral - entre o Norte e o Sul globais na cobertura de protestos pela imprensa internacional. Também houve uma inflexão abrupta na cobertura de protestos depois da Primavera Árabe, e os protestos no Quirguistão aconteceram antes disso, mas o que afirmamos no relatório é que uma análise cuidadosa da repressão pelas autoridades necessitaria de um método diferente de pesquisa do que o adotado nesse trabalho preliminar, que se baseou em notícias e fontes de acesso livre na internet. Um estudo da repressão exigiria de fato uma análise atenta de boletins de prisão da polícia e outros tipos de dados que são melhores para responder a essa questão, o que estava além do escopo do nosso estudo.


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