Folha de S. Paulo


Análise: África é o continente mais homofóbico do mundo

Os liberais do Ocidente ávidos por ver o melhor da África precisam encarar uma verdade inconveniente: trata-se do mais homófobo dos continentes do planeta. Os relacionamentos homossexuais são ilegais em 36 dos 54 países africanos, de acordo com a Anistia Internacional, e em alguns deles são passíveis de pena de morte. Agora há uma nova onda de repressão em curso.

No entanto, não estamos falando apenas da retórica odienta de políticos inescrupulosos. Eles fazem esse tipo de declaração porque sabem que ela ecoará positivamente junto a grande proporção dos africanos. Qualquer pessoa que tenha passado tempo considerável no continente certamente conversou com um ser humano caloroso, amistoso e decente que repentinamente causou susto com um surto verbal de preconceito homófobo. Jornais, rádio e TV muitas vezes insuflam as chamas.

É esse o caso em Uganda, onde um jornal sensacionalista certa vez publicou fotos de dezenas de homossexuais sob a manchete "forca para eles".

A homossexualidade já era crime, lá, mas novas leis ampliaram o escopo de punições, com prisão perpétua para "delitos" como "toques sugestivos em público". O presidente ugandense Yoweri Museveni tinha prazo até domingo para assinar, vetar ou propor emendas ao projeto, e inicialmente indicou que o vetaria.

Em 18 de janeiro, a agência de notícias Associated Press reportou que ele se reuniu com ativistas norte-americanos de direitos humanos, com a participação telefônica do arcebispo aposentado sul-africano Desmond Tutu, que fez uma comparação entre o projeto de lei as leis racistas sul-africanas da era do apartheid. Museveni "declarou especificamente que o projeto de lei era fascista", disse Santiago Canton, do Robert F Kennedy Centre for Justice and Human Rights, à AP.

Algo o fez mudar de ideia. Um mês mais tarde, o presidente, sob pressão interna, anunciou que assinaria a lei, depois de receber um relatório de uma equipe de "especialistas médicos" sobre a homossexualidade.

Os proponentes da nova lei em Uganda, antiga colônia britânica independente desde 1962, apelam para noções populistas de cultura que definem a homossexualidade como "antiafricana", um comportamento externo imposto ao continente pelos imperialistas ocidentais. Visto por esse prisma, um ataque aos homossexuais é um ataque contra o colonialismo e em favor do nacionalismo e respeito próprio africanos.

Mas, como o relatório dos cientistas apontou, a homossexualidade existe ao longo da história humana.

"Antes da colonização ocidental, não existe registro de quaisquer leis africanas contra a homossexualidade", diz Peter Tatchell, veterano ativista dos direitos humanos e dos direitos dos gays. "O que foi de fato importado para a África não foi a homossexualidade, mas a homofobia".

A homofobia foi imposta judicialmente pelos administradores coloniais e ideologicamente pelos missionários cristãos.

A defesa da "tradição" pode ser uma prestidigitação para explorar o relativismo cultural e a culpa dos antigos colonizadores. No Ocidente, haverá quem relute em criticar as atitudes africanas, por medo de acusações de racismo. Mas os ativistas rebatem alegando que o que defendem são direitos humanos, como o de não ser torturado, que se aplicam em toda parte e o tempo todo.

Uma minoria tem direito absoluto a ser protegida contra violações da parte de uma maioria, eles argumentam.

A parcela da população da África subsaariana que se define como cristã subiu de 9% em 1910 a 63% em 2010, de acordo com o Pew Research Centre.

Evangélicos dos Estados Unidos foram acusados de voltar suas atenções à África e promover a homofobia com histórias sombrias sobre molestamento de crianças, bestialidade, estupro e doenças letais.

Mas existe um paradoxo nessa onda de opressão: as ásperas leis que estão sendo adotadas podem ser uma medida não do fracasso mas do sucesso da homossexualidade, porque são reação contra os homossexuais que estão afirmando sua identidade política e seus direitos de maneira não vista no passado.

Na semana passada, Edwin Cameron, juiz do tribunal constitucional da África do Sul e uma das primeiras figuras públicas da África a assumir a homossexualidade e se declarar portador do HIV, refletiu: "O mais interessante que está acontecendo aqui é o que chamo de 'transição instável'. Isso explica a força da reação, no momento em que os homossexuais africanos começam a se assumir. O processo causa raiva e ódio, mas o que está acontecendo é irreversível. Os homossexuais estão se conscientizando, se organizando e se pronunciando".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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