Folha de S. Paulo


Análise: Como África do Sul, Teerã é prova do inesperado na diplomacia

A morte de Nelson Mandela causou uma efusão de pesar e de recordações pré-preparados, em todo o mundo. Líderes e políticos de todos os matizes celebraram Mandela como estadista, como pai da África do Sul democrática, como figura histórica cuja tolerância e capacidade de perdão aos seus antigos verdugos mantiveram a união de um país dividido.

Mais que uns poucos críticos apontaram para o fato de que muitos dos políticos que celebraram o legado de Mandela não o avaliaram por seu verdadeiro valor quando isso era importante.

Durante os anos de Mandela na prisão, não faltavam nos Estados Unidos partidários do regime que o colocara lá, e detratores no governo e na direita política norte-americano que viam o futuro ganhador do Nobel da Paz como pouco mais que um terrorista, um comunista, um encrenqueiro e charlatão determinado a conquistar poder pessoal à custa de seu povo.

Lembrar e esquecer caminham juntos, e isso afeta também a maneira pela qual os norte-americanos imaginam a África do Sul. É difícil recordar esse fato agora, mas por boa parte dos anos 80 a África do Sul era um país de péssima reputação junto ao povo e à mídia norte-americana. Membro titular da versão daquela década para o Eixo do Mal, o país era considerado malévolo o bastante para fornecer vilões à imaginação pública, em todas as formas, do implacável P. W. Botha ao bandido de "Máquina Mortífera 2".

A evolução do relacionamento entre Estados Unidos e África do Sul é instrutiva quanto à melhora no relacionamento entre Estados Unidos e Irã, um degelo tornado possível pela surpreendente eleição de Hassan Rowhani para a presidência iraniana, em junho. Rowhani e sua equipe de política externa adotaram um caminho duplo para a diplomacia, com ações públicas e sigilosas, com o objetivo de negar às elites políticas dos Estados Unidos uma posição de superioridade moral no reino internacional mas ao mesmo tempo buscar diálogo direto com o público norte-americano mais amplo por meio de atos de diplomacia pública e online. Diálogos planejados ou improvisados em veículos como o Facebook e o Twitter servem ao objetivo estratégico de melhorar a imagem iraniana no exterior, ao ajudar os norte-americanos a esquecer o Irã de Ahmadinejad, o Irã do filme "Argo", o Irã dos líderes que negam o Holocausto.

Mas atribuir a melhora na imagem do Irã a "ofensivas de charme" conduzidas na Internet significa confundir causar e efeito. Os tweets são sintomas de um público iraniano cansado de ser visto como um pária pela comunidade internacional. Eleições têm consequências, mesmo no Irã, e se Rowhani está em condição de conduzir suas campanhas no Twitter é porque ele foi conduzido a essa posição por um povo ansioso por ver restaurado o bom nome de seu país.

As raízes da presente reabilitação iraniana recuam ainda mais ao passado, ao Movimento Verde de 2009 e à primeira das "revoluções via Twitter". As histórias sobre o Irã começaram a falar de mais do que apenas fanáticos religiosos determinados a conduzir um confronto apocalíptico com o Ocidente. O mais importante é que as imagens dos manifestantes iranianos marchando aos milhões, exigindo que seus votos fossem respeitados, e dessas mesmas pessoas sendo detidas, espancadas ou sofrendo destino ainda pior, por ousarem protestar, tornaram possível aos norte-americanos se imaginar como parte da narrativa, como companheiros de viagem na luta pela democracia, um conflito patrocinado pela tecnologia norte-americana do Twitter e do Facebook.

O Movimento Verde fez com que os norte-americanos voltassem a aceitar a possibilidade de um "bom" Irã, e abriu caminho à atual diplomacia pública e via mídia social de Rowhani. Foi necessário um surto semelhante de violência causada pela indignação para que os norte-americanos prestassem atenção ao sofrimento dos negros da África do Sul: o massacre de mais de 500 estudantes secundaristas no levante de Soweto, em 16 de junho de 1976. Soweto foi importante porque transformou a África do Sul, nas mentes dos norte-americanos, em "um novo estágio na luta continuada do movimento dos direitos civis", de acordo com o historiador Tim Burke. Defender os direitos dos negros sul-africanos se tornou uma forma de "reencenar" as campanhas de combate à segregação nos Estados Unidos nos anos 50 e 60, mais uma vez nas palavras de Burke, permitindo que uma nova geração de norte-americanos, brancos e negros, "sentisse estar participando de algo que tinha enorme clareza moral".

Juntos, Soweto e o Movimento Verde abriram caminho para atos de redenção mais grandiosos. Inesperados e acontecidos sem planejamento, eles ilustram a natureza desestruturada da diplomacia pública. A História recorda a melhora de reputações nacionais como resultado de projetos intencionais, liderados por membros transformadores da elite, como Mandela ou Rowhani. Mas em momentos críticos da História da África do Sul e do Irã, os líderes do governo e da oposição estavam na verdade defasados com relação à opinião pública, correndo para responder a acontecimentos que eles pouco tinham feito para formular ou controlar.

A mudança de regime por fim reabilitou plenamente a África do Sul, com o fim do apartheid e o nascimento do país arco-íris, completando o processo iniciado em Soweto. Provavelmente não haverá um final arco-íris para o Irã. Os compromissos de política externa dos Estados Unidos se limitam a buscar solução para a questão nuclear e a conter as aspirações iranianas à hegemonia regional, compromissos refletidos por um regime de sanções que visa punir o Irã por seu programa nuclear, e não por suas sistemáticas violações dos direitos humanos. O Irã não precisa de uma mudança de regime para ser reabilitado pelo público dos Estados Unidos: só precisa deixar de ser uma ameaça.

O fim de jogo, no impasse nuclear entre o Irã e os Estados Unidos, será em última análise mais parecido com o que aconteceu na Rússia pós-soviética do que com a África do Sul, e Estados Unidos e Irã serão menos amigos do que ex-inimigos. A brutalidade política e as persistentes violações dos direitos humanos impedirão reconciliação plena entre os dois países, ainda que esses problemas não devam se provar significativos a ponto de impedir que eles compartilhem dos benefícios da détente. Com o tempo, dissidentes iranianos como Mir Hossein Mousavi e Mehdi Karrobi serão esquecidos pelo público e pelos líderes dos Estados Unidos da mesma forma que Solzhenitsyn, Sakharov e Yelena Bonner o foram.

A satisfação de uma paz fria terá de ser suficiente. Isto é, presumindo que os norte-americanos continuem a prestar atenção. Quase um quarto de século depois que Nelson Mandela foi libertado da prisão, a África do Sul ocupa muito pouco do espaço que ocupava no passado, na imaginação dos norte-americanos. Esquecer a África do Sul "malvada" significa, como no caso da Rússia, que o país seja esquecido de todo. É esse o destino dos Estados renegados, atuais e futuros. Reputação e diplomacia são um jogo de otários, sujeito à atenção volúvel e transitória de um público norte-americano que vive em perpétua busca de novos demônios e dragões a abater. No fim, o Irã também será esquecido, relegado às páginas dos fundos do "New York Times" junto com as demais barbaridades recentes cometidas por algum país em um canto obscuro do planeta.

SHERVIN MALEKZADEH é professor-assistente visitante do Swarthmore College, nos EUA. Participou do Movimento Verde de 2009 e colabora com "The New York Times" e "The Atlantic", entre outros veículos.
Tradução de PAULO MIGLIACCI


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