Folha de S. Paulo


Igreja símbolo da luta contra apartheid lota em memória a Mandela

A adoração religiosa dos sul-africanos por Nelson Mandela manfestou-se ontem na igreja símbolo da resistência ao apartheid, numa missa de domingo mais longa e concorrida do que costuma acontecer.

Mandela, morto na quinta, foi o personagem de cultos de diversas religiões pelo país ontem, segundo havia pedido o governo, em um "dia de reflexão e oração".

Na igreja católica Regina Mundi, no bairro de Soweto (Johannesburgo), havia razões sentimentais e históricas para lembrar o líder.

Em tons messiânicos, o padre Sebastian Rossouw referiu-se a Mandela como "uma luz maior, a luz de Deus". "Deus nos enviou o profeta Isaías, nos enviou são João Batista e nos enviou Mandela. Deus mostrou a luz que pode brilhar na escuridão", pregou, para centenas de pessoas, a maioria da região, mas também rostos brancos que certamente não eram de lá.

Antes mesmo de sua morte, Mandela já era tratado como divindade. Ocupa o lugar mais alto em um mural na parede homenageando líderes da luta contra o regime de segregação racial, encerrado em 1994.

Ao lado, o vitral na fachada principal preserva buracos de bala de quase 40 anos de idade. Foram feitos pela polícia sul-africana em 1976, ao perseguir jovens que ali buscavam refúgio durante o Levante do Soweto, a primeira vez em que o apartheid realmente balançou.

Numa capela ao lado do altar, um livro de condolências foi aberto com foto de Mandela e uma vela. "Ele sofreu, ele sentiu a dor, ele sentiu-se angustiado, e então Deus ofereceu muito a ele", dizia uma mensagem. "Madiba, você mudou minha vida", resumia outra, chamando Mandela por seu apelido entre os sul-africanos.

Mesmo contando com apenas 7% da população entre seus seguidores, a Igreja Católica é uma das maiores e mais organizadas do país, dada a fragmentação religiosa da África do Sul.

Orgulhosamente africana, a Regina Mundi faz suas missas em línguas tradicionais como zulu e soto, falados pela maioria da população negra de Johannesburgo. O inglês é secundário.

Os vitrais têm imagens de negros ao lado de passagens bíblicas tradicionais, e o quadro principal ao lado do altar tem Maria e o menino Jesus de pele escura. A Bíblia exposta é em zulu.

Mandela, mesmo sem ser católico, tinha relação próxima com o local. Em 1997, já como presidente, deixou-se filmar lá dançando com os braços dobrados junto ao corpo, no que ficou popularizado como "Madiba dance".

Foi na Regina Mundi que ocorreram as audiências da Comissão de Verdade e Reconciliação após o apartheid, modelo para todas as outras - inclusive a brasileira.

Ontem, o dia foi de rezar pelo amigo ilustre e de cantar em seu louvor. Senhoras da ordem da Imaculada Conceição, uniformizadas para a ocasião (vestido azul claro e gorro roxo) faziam dueto com o coral da igreja, ao som de tambores. Meninas de véu branco seguravam velas, nas primeiras fileiras.

Transe
Ao menos dez cânticos foram entoados nas três horas de missa, culminando num refrão que é famoso nas ruas sul-africanas e diz apenas: "Nelson Mandela, não há ninguém como ele", em soto. Foi repetido à exaustão por uma plateia em transe.

Ao final, após um último canto -o hino sul-africano-, o padre fez a oração final, pedindo que Mandela "descanse em paz e levante-se em glória". Como se sua morte pudesse ser a ressureição da África do Sul que um dia o líder idealizou.

Como esta, diversas celebrações ocorreram ontem na África do Sul. Uma delas, em Johannesburgo, reuniu o presidente, Jacob Zuma, e Winnie Mandela, ex-mulher do líder morto.

O enterro de Mandela ocorrerá domingo, em Qunu, na província do Cabo Oriental, lar de sua tribo. O governo sul-africano espera 60 chefes de Estado. Entre eles Dilma Rousseff, que chega hoje, acompanhada dos ex-presidentes José Sarney, Fernando Collor, Fernando Henrique Cardoso e Lula.


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