Folha de S. Paulo


Análise: O maior estadista, com raros seguidores

A maneira exemplar como Nelson Mandela operou a descolonização da África do Sul transforma-o no maior estadista africano de todos os tempos. Pena que não tenha tido seguidores fora da própria África do Sul.

Quando digo descolonização refiro-me à libertação da maioria negra do apartheid imposto pela minoria branca, tão ou mais cruel que o colonialismo clássico das potências europeias no continente.

Em toda a África, à descolonização sucederam-se conflitos tribais, muitos dos quais prosseguem até hoje; ditaduras, em geral praticadas pelos pais da independência; e um declínio econômico e social penoso --fenômenos que geraram uma diáspora colossal.

Na África do Sul, ao contrário, a tolerância de que Mandela foi um arquétipo inigualável permitiu uma transição tão ordenada quanto possível.

Não houve conflitos sérios entre os 11 grandes grupos étnicos que habitam o país. Não houve a ditadura que Mandela poderia ter facilmente implantado, tal o grau de prestígio e respeito de que gozava, já durante os 27 anos de prisão, acentuados depois que saiu para coordenar a transição, com a indispensável colaboração de F.W. de Klerk, o líder branco que forneceu o perfeito contraponto a seu parceiro negro (não por acaso, os dois ganharam o Nobel da Paz).

A África do Sul de Mandela foi, de certa forma, a precursora do incipiente despertar da democracia na África negra. Dos três países que podiam ser considerados democráticos há 20 anos, hoje 25 merecem esse rótulo, por imperfeitas que sejam as suas democracias.

Na África do Sul, Mandela foi substituído por Thabo Mbeki e, este, por Jacob Zuma, em eleições que a comunidade internacional não hesitou em carimbar como livres e justas, as duas palavrinhas mágicas que definem o teor de democracia.

Na economia, a África do Sul manteve razoável performance, suficiente para ser alçada ao grupo dos grandes emergentes, os BRICS, ao lado de Brasil, Rússia, Índia e China.

É verdade que o criador da sigla, Jim O'Neill, fez restrições à participação sul-africana, por achar que o país não podia ser colocado no mesmo patamar dos quatro outros parceiros, mas a ressalva não afetou sua participação nas cúpulas do grupo, a mais recente delas realizada exatamente em Pretória, na África do Sul.

Consequência dessa transição ordenada: ao contrário da grande maioria dos demais países africanos, a África do Sul é terra de acolhida de imigrantes, não de produção em série de emigrantes.

O que permitiu essa mágica transição? Talvez um grau de paciência mais próprio do zen-budismo do que das culturas animistas muito próprias da África. Logo depois de se eleger, em 1994, a Folha perguntou a Mandela como ele lidaria com o que se presumia seriam formidáveis pressões da maioria negra para superar o atraso e a pobreza inevitáveis nos longos anos de apartheid.

Resposta: "Assim que o primeiro negro obtiver sua casa, todos os seus vizinhos terão a certeza de que mais adiante também terão a sua, e saberão esperar".

Souberam --e Mandela morre ainda aureolado por esse halo de quase santidade pelo exemplo de vida e de ação.


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