Folha de S. Paulo


Jornalista marroquino desafia rei com denúncias e é preso

O poderoso rei de Marrocos, Mohammed 6º, dono de uma fortuna estimada em R$ 5 bilhões, estava especialmente incomodado com o que se fazia num modesto escritório com oito computadores na capital, Rabat.

Na redação do site Lakome ("Para Vocês", em árabe), um de seus fundadores, o jornalista Ali Anouzla, 49, vinha escrevendo uma série de reportagens desagradáveis ao monarca.
Até que Anouzla, descrito por amigos como "pacifista convicto", resolveu dar um link para uma página do diário espanhol "El País" em que se reproduzia um vídeo da Al Qaeda com ameaças a Mohammed 6º.

Pouco depois, em 17 de setembro, foi preso sob a acusação de "fornecer apoio material" e "fazer apologia" ao terrorismo, podendo pegar até 20 anos de cadeia. Há 11 dias, porém, Anouzla foi posto em liberdade provisória.

Num país em que a realeza controla o Judiciário, o recado pareceu claro. "Isso foi uma vingança contra tudo o que Anouzla já havia publicado", diz Ahmed Benseddik, ex-engenheiro que se juntou ao Lakome após discordar de decisões de Mohammed 6º.

Na lista de "desaforos" de Anouzla há uma série de artigos questionando os gastos do rei e seus períodos fora de Marrocos -o jornalista calculou que ele ficou 57 dias no exterior de janeiro a junho deste ano, sem delegar a ninguém suas funções de chefe de Estado -o primeiro-ministro, Abdelilah Benkirane, é o chefe de governo.

Mas o "basta" para Mohammed 6º teria sido a denúncia feita pelo Lakome, em julho, de que o rei concedera indulto a um pedófilo espanhol condenado a 30 anos por abusar de 11 crianças.
A notícia causou indignação, e o monarca foi forçado a retirar o perdão ao criminoso. A partir dali, Anouzla ganhou notoriedade e, com isso, ficou mais exposto aos olhos dos amigos do rei.

Prender jornalistas sob acusação de ligação com o terror não chega a ser novidade no Marrocos -Mustafa Hasnaoui cumpre pena de três anos por "fazer parte de grupo criminoso" após escrever sobre jihadistas marroquinos que vão para a Síria.

A diferença, no caso de Anouzla, é que várias entidades, como a RSF (Repórteres sem Fronteiras) e a Anistia Internacional, se uniram para denunciar o episódio e a perseguição a jornalistas -Marrocos ocupa a 136ª posição, entre 179, no ranking de liberdade de imprensa da RSF.

Co-fundador do Lakome (criado em 2010), Aboubakr Jamaï diz que Anouzla é o "exemplo de jornalismo independente que Marrocos precisa ter". Com o amigo fora da prisão, Jamaï quer manter vivo o site -cujo acesso dentro de Marrocos está bloqueado desde 17 de outubro.

A Folha tentou conversar com Anouzla, mas por ora ele prefere o silêncio. Tem medo de que qualquer declaração possa prejudicá-lo em seu processo. A próxima audiência será em 23 de dezembro. Os colegas querem que ele volte a falar -ou, do contrário, agradará ao rei, algo que não está acostumado a fazer.

O jornalista Juliano Machado viajou a convite do seminário "Diálogos do Atlântico"


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