Folha de S. Paulo


Arquiteto do Holocausto estaria sepultado em cemitério judeu

Apesar de todos os esforços realizados pela Alemanha para acertar as contas com seu passado nazista, o destino de um dos principais arquitetos do Holocausto há muito vem se provando um mistério para as autoridades e historiadores.

Heinrich Müller - chefe da temida Gestapo, a polícia secreta de Hitler - foi um dos nazistas de mais alta patente a escapar à captura ou a ter sua morte comprovada, no final da Segunda Guerra Mundial. Historiadores do Holocausto afirmam que investigadores ocidentais procuraram por ele intensamente nos anos posteriores a 1945, e que havia rumores que apontavam sua presença em inúmeros lugares, da Tchecoslováquia à União Soviética ou até o Brasil.

Agora, a questão quanto ao destino de Müller passou por uma reviravolta perturbadora.

O professor Johannes Tuchel, presidente de uma associação que cuida dos memoriais aos combatentes da resistência alemã, alega ter localizado documentos indicando que Müller foi morto, provavelmente em 1º de maio de 1945, e sepultado rapidamente em um túmulo provisório perto da sede do Ministério da Força Aérea nazista, e que mais tarde o corpo foi transferido a uma vala comum no cemitério judeu do bairro de Mitte, no coração de Berlim.

Efe
Heinrich Müller, chefe da Gestapo.
Heinrich Müller, chefe da Gestapo.

Embora a alegação não seja definitiva - não há comprovação forense quanto ao relato, por exemplo -, é confiável o bastante para despertar uma mistura de pesar, indignação e choque, nesta cidade, onde tanto sangue correu e tanto dinheiro foi gasto, e em outros lugares.

A notícia, reportada inicialmente na quinta-feira pelo "Bild", o jornal mais vendido da Alemanha "me causou repulsa", diz Dieter Graumann, presidente do Conselho Central dos Judeus da Alemanha. "É devastador para todos, mas especialmente para um judeu". Ele expressou completo espanto por o aparente destino de Müller - "um tecnocrata do terror" de patente superior à de Adolf Eichmann, o criminoso de guerra julgado e executado por Israel em 1962 - ter passado tempo desconhecido.

Efraim Zuroff, o investigador sênior do Simont Wiesenthal Center, uma organização que busca nazistas foragidos, expressou incredulidade, ao ser contatado pelo telefone. "Não consigo pensar em maneira pior de profanar um cemitério judeu do que sepultar Heinrich Müller nele", disse.

Tuchel declarou em entrevista por telefone que havia feito a descoberta acidentalmente depois de investigar o papel de Müller na repressão a uma rebelião no bairro de Moabit, no centro de Berlim, em 22 e 23 de abril de 1945.

Enquanto o Reich nazista cambaleava sob o bombardeio continuado dos aliados ocidentais e os avanços dos tanques e infantaria soviéticos, o líder da Gestapo aparentemente optou por tocar violino enquanto Berlim queimava, diz Tuchel, e por fim ordenou o fuzilamento de 18 combatentes da resistência em Moabit.

Estima-se que 70 mil soldados e civis tenham morrido nas três semanas finais da guerra, em Berlim. Nos meses posteriores ao final dos combates, cada bairro da cidade organizou equipes de coveiros amadores para recolher corpos e sepultá-los em valas comuns, disse Tuchel, acrescentando que havia 16 dessas valas comuns, contendo total estimado em 2,7 mil corpos, no cemitério judeu de Mitte, o lugar de repouso final do filósofo Moses Mendelsohn, morto no século 18, mas que deixou de ser utilizado para sepultamentos depois de 1829.

Müller estava entre os comandantes nazistas que planejaram o Holocausto na infame conferência do lago Wansee, em Berlim, em janeiro de 1942. Zuroff, que tem doutorado em História do Holocausto, o define como "um dos luminares do Terceiro Reich", e é difícil acreditar que os investigadores que o estavam buscando nos anos 50 e 60 não soubessem o que Tuchel descobriu agora.

O professor afirmou ter encontrado um documento afirmando que um dos coveiros, Walter Lüders, havia procurado a polícia local da Alemanha Ocidental em 1963 e revelado ter sepultado Müller; ele foi interrogado - apenas uma vez - por investigadores de patente mais elevada depois que o jornal "Bild Zeitung" revelou a informação de Lüders.

Ao ver uma foto de Müller que lhe foi exibida pelos investigadores de patente mais alta, Lüders, de acordo com o documento localizado por Tuchel, declarou que "comparei essa foto ao corpo do cadáver", que ele havia transferido de sepultura em agosto de 1945. "E posso afirmar que a pessoa retratada na foto tem aparência idêntica à do corpo que sepultei".

Perguntado sobre os motivos para que nada mais tivesse sido feito, Tuchel especulou que o problema estava em o cemitério judeu ficar em Berlim Oriental. Ele diz não ter encontrado provas de que a Alemanha Ocidental tenha questionado os alemães orientais ou que os aliados ocidentais tenham questionado os soviéticos sobre o acontecido.

Zuroff declarou, sobre a suposta descoberta, que "isso resolveria um mistério muito intrigante, caso seja verdade. Mas repito que me sentiria bem melhor caso existissem provas forenses".

O cemitério, entregue à comunidade judaica em 1948, serve hoje como um local arborizado dedicado à memória, em um dos bairros mais sofisticados de Berlim. E isso o torna típico da capital alemã e de sua turbulenta história.

A "perversa" história revelada na quinta-feira, disse Deidre Berger, presidente do Comitê Judaico Americano na Alemanha, demonstra "o quanto é pequeno o respeito pelas vidas humanas".

"Nem na morte é possível separar as vítimas dos perpetradores", ela acrescentou.

Tradução de PAULO MIGLIACCI

Wolfgang Kumm/Efe
Placa comemorativa no cemitério em Mitte, Berlim.
Placa comemorativa no cemitério em Mitte, Berlim.

Endereço da página: