Folha de S. Paulo


Análise: Egito abre a caixa de Pandora

Sensata (premonitória?) observação de Jeff Martini, especialista da Rand Corporation, sobre a crise no Egito: "Uma intervenção [militar], sem apoio islamita, traria o risco de um cenário Argélia-anos 90".

Ajuda-memória: na Argélia, a FIS (Frente Islâmica de Salvação), partido de fundo islâmico como a Irmandade Muçulmana, agora derrubada no Egito, ganhou o primeiro turno da eleição de 1991 e caminhava para um passeio glorioso nas urnas no segundo turno quando os militares intervieram, cancelaram o pleito e tomaram o poder, do que resultou uma guerra civil de cerca de 11 anos e entre 150 mil e 200 mil mortos.

O que pode impedir a repetição do cenário argelino no Egito é o fato de que a Irmandade Muçulmana não é tão radical quanto a FIS argelina.

É, sim, profundamente enraizada na sociedade egípcia, como descreve Paul Amar, na Jadaliya, publicação do Instituto de Estudos Árabes de Washington: "Os Irmãos Muçulmanos não são uma força marginal no Egito. Estão extremamente bem representados em cada cidade e têm crédito [junto à população] pelo fornecimento de ajuda médica, educativa e jurídica aos cidadãos negligenciados pelo Estado".

Interditar um grupo com esse perfil, como aconteceu durante as sucessivas ditaduras egípcias, é uma violência. E fica sempre o risco de que à violência responda-se com a violência.

Ainda mais que é indiscutível a maioria islamita no eleitorado egípcio: nas eleições parlamentares do ano passado, os dois principais grupos islâmicos levaram dois terços dos votos. O braço político da Irmandade (o Partido Justiça e Liberdade) ficou com 43,4% e, o mais radical Al-Nour, com 21,8%.

Se o golpe foi dos seculares contra os religiosos, foi, portanto, contra dois terços dos egípcios, o que é tudo, menos defesa da democracia.

Aliás, o fato de que houve, na semana que antecedeu o golpe, 91 ataques sexuais a mulheres na praça Tahrir, onde se concentravam os adversários do presidente Mursi, demonstra que nem todos os que ali estavam eram adeptos de uma convivência democrática e civilizada.

Sem mencionar que as Forças Armadas foram o poder por trás do trono dos sucessivos ditadores de turno, gozando, de resto, de uma série de regalias para que se mantivessem leais ao presidente de turno.

Portanto, não é pacífico que o confronto no Egito se deu entre o autoritarismo (suposto ou real) da Irmandade e o desejo democrático dos demais. Claro que há democratas sinceros entre os que se levantaram contra Mursi, mas ao optarem por uma flagrante ilegalidade (a deposição de um presidente legitimamente eleito), abriram a caixa de Pandora, a que contém todas as desgraças.

Fechar a caixa é mais difícil, como constata Shadi Hamid, especialista da Brookings Institution: "Optar nesta altura por um rumo revolucionário, após mais de dois anos de transição e cinco eleições, significa começar do zero, com poucas garantias de que, desta segunda vez, será muito melhor. Se o primeiro presidente islamista eleito é derrubado, o que impedirá outros de tentar derrubar um futuro presidente liberal?".


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