Folha de S. Paulo


Obras no palácio presidencial do Paraguai revelam relíquias de guerra com o Brasil

A grafia é cuidadosa e as duas palavras podem ser vistas com nitidez: João Pedro.

Na parede do palácio presidencial do Paraguai, em Assunção, o nome escrito em português, escondido por quase 150 anos sob várias camadas de tinta, guarda parte da história da maior guerra da América do Sul.

Historiadores acreditam que a "pichação" tenha sido feita por um soldado brasileiro, durante a ocupação do Palácio de López pelo Exército do Império, na Guerra do Paraguai (1864-1870).

Junto a rabiscos semelhantes feitos por militares brasileiros no século 19, a inscrição acaba de ser descoberta em meio a uma ampla reforma do prédio, iniciada em dezembro.

Numa mesma parede do corredor que leva ao atual gabinete do presidente, podem ser reconhecidas as imagens de dois navios e um pequeno soldado ""um "boneco de palitinhos" com chapéu.

Uma das embarcações desenhadas traz as mesmas características de um dos navios brasileiros que conseguiram chegar à capital em 1868 e bombardearam o palácio: a disposição dos mastros, uma roda de pás para propulsão.

"Há fotos da época que mostram o barco que estava estacionado na baía de Assunção, e o desenho aparece com as mesmas características", afirma Carlos Cataldi, arquiteto responsável pela reforma e professor da Universidade Nacional de Assunção.

Do bombardeio ao palácio, a equipe de arquitetos e restauradores encontrou, inclusive, uma bala de canhão, que ficara incrustada por mais de cem anos na estrutura de madeira do prédio.

Para Cataldi, não há dúvidas de que os escritos tenham sido feitos por soldados brasileiros, já que estão sobre a pintura original do prédio, em tons de rosa.

O palácio, às margens do rio Paraguai, começou a ser construído em 1857 para se tornar a residência do então presidente Francisco Solano López. Nunca foi habitado por ele: a guerra começou em 1864, antes que o edifício ficasse totalmente pronto.

Seus primeiros "moradores" foram militares brasileiros, que retornaram à cidade em janeiro de 1869, após o bombardeio ao prédio um ano antes.

"Num primeiro momento, o palácio foi ocupado pelo próprio [duque de] Caxias, como quartel-general do comandante do Exército imperial", afirma o historiador Francisco Doratioto, autor do livro "Maldita Guerra", sobre a Guerra do Paraguai.

Não se sabe ao certo por quanto tempo os militares brasileiros ficaram alojados ali. Alguns historiadores paraguaios estimam em até dez anos o tempo de permanência. Doratioto, porém, calcula que tenha durado menos de um ano, já que, em junho de 1869, foi instalado um governo provisório paraguaio.

"O palácio foi devolvido a esse governo, mas uma divisão de ocupação permaneceu no país até 1876, quando foram assinados os acordos de paz do Paraguai com a Argentina", afirma.

Os paraguaios acusam os brasileiros de terem saqueado o prédio antes de sair, levando portas, janelas, lustres e até partes do piso de mármore.

MAQUIAGEM

A primeira restauração --para tentar consertar estruturas atingidas pelo bombardeio e finalizar áreas do palácio-- ocorreu em 1890. Quatro anos depois, ele se tornaria a sede da Presidência.

"Desde então, ocorreram algumas reformas, mas que foram só uma 'maquiagem' do edifício. Encontramos agora fissuras que foram abertas pelo impacto das balas de canhão", conta Cataldi.

Sem o devido cuidado, o prédio de 150 anos já dava sinais de desgaste --como rachaduras e queda de pedaços do teto. A obra atual começou em dezembro de 2012.

A ideia é que o palácio fique pronto para a posse do presidente eleito Horacio Cartes, em 15 de agosto. Contudo, tanto o prazo como os custos estimados já estouraram --o orçamento da reforma, por exemplo, era de 8 bilhões de guaranis (R$ 4,4 milhões), e já foram gastos 20 bilhões de guaranis (R$ 9,7 milhões).

"Não é como uma obra nova, que você estabelece um prazo e segue o plano. Aqui, cada nova descoberta nos obriga a reavaliar o projeto", explica o arquiteto.
Cataldi afirma que o prazo para finalizar a reforma não é a prioridade da equipe --que trabalha, lentamente, com bisturi cirúrgico em partes do palácio para remover as camadas de tinta.

"Estamos finalizando primeiro o gabinete presidencial, e isso é o mais importante. O restante será feito no seu tempo."

RESSENTIMENTO

A discussão sobre o que fazer com as descobertas no palácio passa, obrigatoriamente, por um dos temas mais delicados para o povo paraguaio: a devastação do país com a derrota na guerra.

O atual presidente, Federico Franco, chegou a sugerir que os desenhos e escritos encontrados fossem novamente cobertos com tinta.

Os restauradores, no entanto, defendem que eles sejam preservados, sob uma lâmina de vidro, e fiquem expostos.

"Alguns defendem que ali está a ferida causada pelo Império [do Brasil] ao Paraguai, que o palácio é o nosso Auschwitz. Mas, para nós, é importante deixar como testemunho da história pela qual passamos", diz Cataldi.

Estima-se que entre 200 mil e 300 mil paraguaios tenham morrido na guerra.

"Tudo isso é retrato da história do palácio e da história do Paraguai. Se causa ou não ressentimentos, isso é outra conversa", diz Doratioto, que defende que os desenhos sejam preservados.

"Não é apagando registros do passado que você faz com que ele desapareça."


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