Folha de S. Paulo


Classe média argentina usa 'jeitinho' para driblar inflação e restrições ao dólar

"Tem iogurte natural?", pergunto ao funcionário do supermercado Disco, localizado numa das melhores áreas de Palermo. "Tem, naquela gôndola".
Encontro as opções Yogurísimo baunilha, com ferro, com cereais. Já a marca Yogs só tem a versão com mel e aveia. "Não, não, o natural, o que custa cinco pesos menos?". "Ah, não, esse eles nem estão entregando mais."

A situação se repete em mais dois supermercados. No Coto, a reportagem tentou comprar azeite vegetal comum da marca Cocinero. Só encontrou extra e extra plus. No Easy, impossível comprar o pão de forma Fargo comum -só havia com linhaça ou outros ingredientes.

Desde que teve início o congelamento de preços acordado entre as grandes cadeias sob pressão do governo, em fevereiro, a cena se repete. Os grandes supermercados começaram a tirar das gôndolas as opções mais baratas dos produtos, buscando ganhar um pouco mais vendendo versões mais caras.

Mas a classe média argentina tem se virado para encontrar os produtos em falta. A solução, por ora, parece estar nos "chinos", mercadinhos chineses que proliferaram nos últimos dez anos.

"Tentamos aproveitar isso e oferecemos essas marcas, baixando muito o preço, aí conseguimos atrair um pouco do público das grandes lojas", diz Arturo Zheng, proprietário de um mercado chinês no bairro de Almagro.

São muitas as estratégias que a classe média portenha vem encontrando para conseguir driblar o impacto das políticas econômicas restritivas do governo.

A melhor forma de comprar e vender dólar fora dos olhos do governo é a grande obsessão nacional. Os argentinos estão acostumados a confiar na moeda americana como poupança.

Desde a hiperinflação dos anos 80 e a crise de 2001, quase ninguém acredita em bancos. Agora, que o dólar oficial é vendido a 5,10 pesos, e o paralelo, a quase 10, isso está ainda mais acirrado.

DESESPERO

Desde o final de 2011, o governo argentino tem colocado cada vez mais entraves para a venda da moeda, tentando evitar a fuga de capitais.

"Os argentinos vêm aqui desesperados. Podemos cobrar uma boa comissão que ainda assim eles compram", diz Diego, um vendedor clandestino de dólares de Colônia do Sacramento, no Uruguai.

O país vizinho, pela facilidade de acesso desde Buenos Aires, se transformou num dos destinos turísticos preferidos dos portenhos.

Atravessar o rio da Prata, passear e comprar dólares se popularizou como programa de fim de semana.

Quem fica na cidade tem a opção de vender seus dólares ganhando até 80% na operação em "cuevas" (casas de câmbio clandestinas), com "arbolitos" (vendedores de rua) ou entregadores ilegais que operam por telefone.

Numa pacata esquina de Palermo Soho funciona uma dessas "cuevas". Por fora, é uma agência turística. Ao entrar, o visitante é, então, levado por um corredor que termina numa pesada porta.

Atravessando-a, dá de cara com um vidro tipo antibalas. Tudo é um tanto escuro, a iluminação é fraca. Do outro lado da janelinha, o vendedor pergunta quanto o visitante quer comprar.

Em restaurantes acostumados a trabalhar com itens importados, a situação é mais difícil. Falta wasabi nos japoneses, temperos europeus nos internacionais, molho de tomate italiano nas cantinas.

"Tem Guinness?", perguntou a reportagem no tradicional pub Down Town Matias, na estação de Belgrano R. "Não tem mais, mas temos chopp negro argentino", oferece o garçom, desolado. "Para Guinness, tem que bater na casa do Moreno", diz, referindo-se ao secretário de Comércio Exterior, Guillermo Moreno, espécie de xerife das ordens de Cristina Kirchner.

Voltando para casa num dos dias dedicados a essa reportagem, percebi que não tinha pesos suficientes para pagar o táxi. Faltavam 10 pesos. "Posso te dar um dólar?", pergunto. O motorista me olhou agradecido e disse, rindo: "Claro, um dólar agora é um Messi." Dólar-Messi, em razão do número da camisa do imparável jogador do Barcelona, é como já ficou conhecida a nova criação bem-humorada dos argentinos em tempos de crise.


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