Folha de S. Paulo


Megaprojeto da Vale é alvo de protestos em Moçambique

Na semana passada, cerca de 400 pessoas bloquearam as estradas de acesso à mina da Vale em Moatize (Moçambique), interrompendo o transporte do carvão que seria exportado pela ferrovia.

Camargo Côrrea tenta evitar conflito similar ao da Vale em Moçambique

A maioria dos manifestantes eram oleiros que foram retirados de suas casas para a construção da mina e que, para isso, receberam uma indenização de 60 mil meticais (cerca de R$ 4.000).

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"A indenização não é suficiente. A população está muito zangada com a Vale. Se alguém puser fogo aqui, vai espalhar", disse à Folha Refo Agostinho Estanislau, um dos líderes do movimento.

Esse foi mais um capítulo da novela da Vale em Moçambique. A empresa explora umas das maiores reservas de carvão mineral da África no norte do país, província de Tete. O investimento da empresa, quando concluído, será de US$ 8,5 bilhões, mais de metade do PIB do país.

Mas a Vale enfrenta percalços desde que a mina começou a produzir, em 2011. O reassentamento das 5.100 pessoas que tiveram de ser removidas da área de reserva mineral foi um pesadelo.

As casas doadas às famílias, construídas pela Odebrecht e uma empresa terceirizada, estão sendo refeitas pela segunda vez e muitos estão morando em barracas.

Poucos meses depois de serem entregues, começaram a ter rachaduras e vazamentos. A erosão começou a abalar a estrutura das casas.

Patricia Campo Mello/Folhapress
Obras de reparos nas casas rachadas no reassentamento de Cateme
Obras de reparos nas casas rachadas no reassentamento de Cateme

Não há água suficiente perto das terras que foram alocadas aos reassentados e muitos não conseguem plantar nada. "Nos prometeram dois hectares de terra, só deram um, e uma terra ruim que não rende nada", diz João Salicuchepa Gimo, 39, que mora com a mulher e sete filhos no assentamento de Cateme.

Afastados da cidade, eles não conseguem nem mais fazer os "bicos" que os sustentavam. "Antes, a gente complementava nossa renda vendendo roupas na cidade, a família chegava a tirar US$ 300 por mês. Agora, estamos tão longe de Tete, que não dá mais para fazer isso."

No primeiro grande protesto contra a Vale, em janeiro de 2012, 1.500 pessoas sitiaram a estrada de ferro do Sena, por onde a empresa escoa sua produção para o porto da Beira. A polícia moçambicana reagiu com truculência e seis pessoas sofreram ferimentos graves.

Em outubro do ano passado, ONGs do país encaminharam uma carta ao presidente de Moçambique, Armando Guebuza, acusando a Vale de "violação dos direitos e liberdades fundamentais das famílias afetadas pelo projeto".

"Infraestrutura de má qualidade, más condições de habitação, concessão de terra imprópria para a prática de agricultura, dificuldade de acesso à água potável, falta de transportes", dizia.

Editoria de Arte/Folhapress

OUTRO LADO

"Tivemos alguns problemas técnicos, como os defeitos construtivos na casa --o material que foi usado na parede e no piso por conta do excesso de calor e tipo de clima sofreu contração e trincou. Tivemos de fazer melhorias ao redor das casas para mitigar risco de erosão pela chuva", afirmou Ricardo Saad, diretor de implantação de projetos da Vale na África, Ásia e Austrália.

Saad diz que a distribuição do segundo hectare para os reassentados depende do governo, uma vez que não existe propriedade privada de terra no país --é tudo concessão. "Infelizmente, o governo por alguma limitação ainda não designou o segundo hectare. É uma pendência, sabemos dela e estamos trabalhando junto ao governo para solucionar", disse.

Segundo Esperança Bias, ministra dos Recursos Minerais de Moçambique, "houve sim falhas no processo de reassentamento". "Mas, graças ao bom diálogo que existe entre o governo e as empresas, está sendo possível resolver os problemas em Cateme em relação à qualidade de infraestruturas e oportunidades para as pessoas sentirem que o projeto também veio para beneficiá-las", disse.

O investimento estrangeiro é um dilema no país, que precisa muito de capital externo para se desenvolver.

A capacidade de investimento do Estado é muito limitada --mais de 40% do Orçamento do país vem de doações externas.

Com a corrida do "carvão", o país cresceu 7,5% em 2012. A Vale emprega cerca de 1.700 funcionários e 5.000 terceirizados no país.

Patricia Campo Mello/Folhapress
Mina de carvão da Vale em Moatize, província de Tete, Moçambique
Mina de carvão da Vale em Moatize, província de Tete, Moçambique

IMAGEM AFETADA

Mas Moçambique ainda está em 185º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU, o penúltimo lugar da lista, e 60% da população vive com US$ 1 por dia.

"O entendimento da cultura e a administração de expectativas não são fáceis, mas nós sentimos orgulho de ter feito um reassentamento que, se não foi perfeito, foi muito bem feito", diz Saad.

A Vale diz que faz correções: constrói poços e uma represa em Cateme, iniciou programas de geração de renda como a criação de frangos e de formação profissional.

Para o escritor moçambicano Mia Couto, que atua também em licenciamento ambiental para grandes obras, há um desafio adicional. "A grande questão é a relação com os antepassados nas zonas rurais --os deuses são os defuntos da família, enterrados nas terras ocupadas há gerações", explica.

Para o reassentamento da Vale, foram transferidos os vivos, os mortos, as cabras e as vacas. Cerca de 1.600 ossadas de antepassados que estavam na área de mineração foram transferidas, com rituais desempenhados pelos líderes religiosos locais.

Analistas apontam que esse tipo de problema afeta o "soft power" (poder de persuasão) do Brasil na África e sua estratégia de aproximação com países pobres.

Um dos pontos da estratégia brasileira é ter uma imagem diferente em comparação às antigas potências "imperialistas".

Mas não é só o reassentamento que traz enormes desafios para a Vale. A logística precária de Moçambique atravanca os planos.

Na mina, uma montanha de carvão está se acumulando há meses porque não há como escoar todo o produto.

A capacidade da linha ferroviária é de 6 milhões de toneladas/ano. A capacidade de produção é quase o dobro.

A empresa está construindo uma nova linha férrea. Quando finalizada, transportará 18 milhões de toneladas.

Mas isso vai exigir investimentos de US$ 4,5 bi. Com isso, o início da construção de Moatize 2, que iria ampliar a capacidade de produção para 22 milhões de toneladas, foi adiada para o fim de 2015.


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