Folha de S. Paulo


Análise: Inimigo do relativismo, Bento 16 deixa herança maculada

A fragilidade do homem de 85 anos que renunciou, por razões de saúde, ao cargo de 265º bispo de Roma não condiz com sua reputação merecida de dogmatismo.

Visto, com razão, como teólogo sutil, este papa em muitos momentos passou a impressão de que seu ponto forte real era o fato de ser estudioso do poder.

Inimigo contumaz do relativismo moral e guerreiro cultural militante, o papa Bento 16 teve um impacto enorme sobre a Igreja Católica, impacto esse que antecede de longe sua permanência relativamente breve no trono de São Pedro.

Bento ocupou com firmeza a linha de continuidade a partir de João Paulo 2º, o papa polonês de quem foi confidente e implementador, governando com centralismo férreo para impor a ortodoxia e reverter o processo de modernização iniciado pelo Concílio Vaticano 2º.

Karol Wojtyla, que emergiu do conclave de cardeais em 1978 como papa João Paulo 2º, fez de Joseph Ratzinger, teólogo bávaro com pouca experiência pastoral, primeiro cardeal e depois chefe da Congregação para a Doutrina da Fé. Esta é a instituição do Vaticano sucessora da Santa Inquisição; seu trabalho consiste em velar pela ortodoxia.

O cardeal Ratzinger investiu contra a Teologia da Libertação, na América Latina, e os teólogos jesuítas na Europa, atacando o feminismo e o homossexualismo e, aparentemente, pensando que os excessos do primeiro teriam levado ao segundo, ao confundir as diferenças entre homens e mulheres.

A rigidez dele e de João Paulo 2º os levou a tentar sufocar as discussões sobre os padres casados e o celibato, a ordenação de mulheres, a contracepção e o aborto.

O cardeal Ratzinger ocupou essa posição por 25 anos, até suceder a João Paulo, em 2005 --tempo mais do que suficiente para moldar as instituições da Igreja Católica, mesmo que não o mundo real dos fiéis católicos, no formato que queria.

A Igreja Católica Romana, com cerca de 1,2 bilhão de seguidores em todo o mundo, é uma força espiritual potente e uma instituição singularmente poderosa.

O papa procurou blindá-la com as certezas doutrinais de um militante clerical.

Houve momentos em que a impressão que se tinha era que ele estava competindo com as certezas inequívocas e aparentemente concentradas do islã.

A guerra do papa Bento contra o relativismo parece ser incapaz de traçar distinções entre os crimes mais hediondos e divergências discutíveis em que a fé discorda da razão --estas, a matéria-prima da teologia. Será que isso agora poderá mudar?

Os eleitores papais são um pouco como o FMI ou o Banco Mundial no fato de terem uma representação desproporcional de europeus, geralmente escolhidos por seu conservadorismo (cerca de um quinto é de italianos, e quase dois quintos são burocratas do Vaticano).

Os cardeais da América Latina, África, Ásia e do Oriente Médio com frequência são mais conservadores, de qualquer modo.

Os papas Bento e João Paulo parecem ter conseguido encher com seus escolhidos o colégio de cardeais que vai eleger o novo papa, mas o absolutismo deles pode acabar por criar mais católicos apenas culturais que os católicos da espécie teologicamente correta que pretendiam.

Tradução de CLARA ALLAIN


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