Folha de S. Paulo


Árabes vivem crise de identidade, diz escritor

Quando lançou o ensaio "On Identity", em 1996, Amin Maalouf esperava que o livro se tornasse obsoleto em um futuro próximo --que a ideia de que uma crise de identidade teria consequências violentas fosse coisa superada.

O escritor franco-libanês consolidou sua carreira e foi eleito imortal da Academia Francesa. Mas hoje ainda testemunha um Oriente Médio imerso em conflitos sanguinolentos entre comunidades.

Parte dos confrontos é travada entre sunitas e xiitas, casos de Iraque, Síria e Líbano. Outra parte está ligada ao papel da religião no Estado --caso do Egito, onde Maalouf vê atitudes equivocadas do governo quanto ao islã.

Damien Meyer - 18.jul.2011/AFP
Amin Maalouf, escritor franco-libanês, em sua casa na França
Amin Maalouf, escritor franco-libanês, em sua casa na França

Leia trechos da entrevista que o escritor concedeu à Folha por telefone, de Paris.

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Folha - Há temor de uma nova guerra civil no Líbano. O senhor está preocupado?
Amin Maalouf - É preocupante, mas há sinais encorajadores. A população está dividida em duas partes. Metade é hostil ao atual regime da Síria, e metade tem ressalvas quanto à insurgência e quer que esse governo continue.

Meu temor é que essa divisão política produza uma confrontação militar. Mas os principais grupos militares se abstiveram do confronto, apesar de poder ser dito a esta altura que o regime da Síria quis esse tipo de conflito armado e tentou provocá-lo.

Essa situação tem origem no conflito de identidade, como o sr. descreve no seu livro?
Penso que o conflito na Síria tornou-se, sim, um conflito entre duas comunidades.

O regime se apoia na comunidade alauita [xiita], e o conflito parece cada vez mais a disputa entre a maioria sunita e a minoria xiita. O Exército tornou-se a força de uma comunidade pequena, e por isso muitas pessoas de outros grupos desertaram e se uniram à oposição. Isso está claro hoje e se reflete no Líbano.

Em muitos casos, a situação nos países árabes orientais --Síria, Líbano, Iraque, Bahrein etc.-- tem como fator decisivo o conflito entre sunitas e xiitas. É claro que isso não acontece no norte da África, em que não há xiitas e, portanto, não há conflito.

Como esses países chegaram a uma situação tão crítica?
Essa parte do mundo está dividida. Foi dividida por linhas comunitárias. Mas há elementos que são recentes.

Dei um exemplo, que é o conflito entre sunitas e xiitas. Claro que há divisão entre xiitas e sunitas no mundo muçulmano desde o século 7º. Mas esse confronto entre comunidades, sangrento como no Iraque, é uma coisa nova.

Foi iniciado quando?
Começou principalmente nos últimos dez anos. Tornou-se maligno na invasão do Iraque (2003), provavelmente porque houve um sentimento entre os sunitas de que eles perderam a guerra.

Algumas pessoas desempenharam um papel importante em alimentar essa oposição entre as comunidades.

Uma delas foi Abu Musab al Zarqawi [islamita ligado à Al Qaeda, morto em 2006 pelos EUA], ao perpetrar massacres e fazer propaganda antixiita. Isso levou a um confronto que não existia.

O poeta sírio Adonis diz que a cultura árabe já foi extinta. Você acha que isso leva a uma crise de identidade, também?
Há outras questões cruciais. O que aconteceu no último ano foi importante --houve levantes e uma aspiração por democracia, por mais liberdade. E houve um debate muito relevante tomando forma, que é a participação da religião nessas sociedades.

O regime anterior no Egito costumava dizer que o inimigo eram os extremistas religiosos. Grupos como a Irmandade Muçulmana pareciam ser a principal oposição.

Agora. em muitos países as pessoas votaram nesses grupos, porque eles têm legitimidade e presença na população. O que vemos no Egito e na Tunísia são esses movimentos sendo confrontados pela realidade dos governos.

Não tenho certeza de que a população irá aceitar outro totalitarismo político e social. Esta é uma era de incertezas. Mas algo está se movendo.

A identidade religiosa é mais importante hoje?
Não tenho certeza de que essa seja uma atitude a longo prazo. Foi uma reação à situação em que esses grupos eram a principal oposição.

Mas não acho que a população tenha votado por regimes religiosos, por exemplo, no Egito. A Irmandade não foi eleita por ser um movimento islâmico, mas apesar de ser.

A escolha era entre uma pessoa que parecia vir do antigo regime [Ahmed Shafiq] e uma da Irmandade [Mohamed Mursi, o atual presidente]. Os egípcios decidiram não votar no antigo regime.

Acho que o governo está errado em impor essa nova Constituição. Deveria mostrar que o islã não entra em conflito com a democracia, e não islamizar as instituições. O papel deles é propor soluções para os problemas, mas não há solução religiosa para os problemas econômicos.

Em "On Identity", o senhor dizia torcer para a crise da identidade se tornar irrelevante no futuro. Isso de fato ocorreu?
Não. E não acho que estejamos próximos da solução. É ainda mais complicado hoje. Muitas sociedades enfrentam tensões por problemas não solucionados de identidade.

Os árabes também?
Sim, assim como os europeus. Claramente o problema de identidade no mundo árabe é mais maligno hoje, por uma série de razões, entre elas o conflito sunitas-xiitas.

Também há explicações globais. Na globalização, todas as culturas se sentem sob pressão. A reação natural a isso é que todos queiram reafirmar suas identidades. Pessoas que vêm de grupos frágeis têm medo de ser aniquiladas, e pessoas de grupos poderosos temem ser invadidas por uma cultura externa.


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