Folha de S. Paulo


Expectativa de que Rússia decolaria foi frustrada mesmo após o fim da URSS

Maxim Zmeyev/AFP
Protestos na Rússia marcam o dia 07.
Protesto na Rússia

No início da década passada, o banco Goldman Sachs fez o prognóstico de que as economias de Brasil, Rússia, Índia e China (os Brics) ultrapassariam as das principais nações desenvolvidas, em algumas décadas.

A projeção era apoiada pela robusta expansão do PIB do grupo, uma aparente confirmação de que a abertura econômica –abraçada em alguma medida pelos quatro– estava surtindo efeito.

Na Rússia, o boom veio após uma fase de desorganização produtiva que sucedeu o ano de 1991, quando caiu o comunismo, instaurado pela revolução que completa um século neste mês.

Mas o otimismo em relação ao país –assim como ao Brasil– foi frustrado. Depois de crescer, em média, 7%, entre 1999 e 2008, a economia russa tem patinado desde a crise financeira global.

PIB per capita soviético ainda está muito distante do patamar americano - Renda per capita da União Soviética como % da americana*

Não foi a primeira vez que a expectativa de que o país decolaria decepcionou.

Depois que o regime czarista foi derrubado, em outubro de 1917, o governo dos EUA enviou dois emissários para entender melhor as intenções de Vladimir Lênin, um dos líderes revolucionários.

Um deles, o jornalista Lincoln Steffens, ficou tão impressionado com o modelo que, quando retornou, cunhou a frase: "Eu vi o futuro e ele funciona".

Por que as Nações Fracassam
Daron Acemoglu, James A. Robinson
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A anedota é contada no livro "Por que as Nações Fracassam", dos economistas Daron Acemoglu e James Robinson, que analisa casos de desenvolvimento econômico bem-sucedidos e frustrados.

A antiga União Soviética faz parte do segundo grupo, nos quais, segundo os autores, a prosperidade é freada por instituições extrativas, cuja função é sugar ganhos de alguns setores e transferi-los para uma pequena elite.

Mas o mundo demorou a se dar conta dos efeitos disso. Em 1984, Paul Samuelson, Nobel de Economia, reafirmou seu prognóstico da década de 60 de que a economia soviética ultrapassaria a americana, adiando apenas o prazo em que isso aconteceria: de 1997 para 2012.

Segundo Acemoglu e Robinson, essa impressão era apoiada pela forte expansão que a União Soviética obteve por um longo período.

Padrão de vida russo se aproxima ao de Portugal e é maior do que em emergentes como o Brasil - PIB per capita em US$ mil em 2017, medido em paridade do poder de compra

"Entre 1928 e 1960, a renda nacional cresceu 6% ao ano, provavelmente o surto mais rápido de crescimento econômico na história até aquele momento", apontam.

Mas as instituições extrativas que guiavam a expansão freavam os investimentos que levam à inovação constante.

Um exemplo era a transferência forçada da produção da agricultura, que foi coletivizada no fim dos anos 20, para o setor industrial. A ideia era que o Estado usasse o excedente para alimentar a mão de obra das novas fábricas.

Mas a total falta de incentivos para que os agricultores trabalhassem duro contribuiu para um colapso da produção de alimentos, levando milhões à morte por fome.

A essas alturas, segundo Douglass North, também ganhador do Nobel de Economia, alguns ideais dos marxistas logo após a revolução –total abolição de preços e salários, por exemplo– já tinham sido abandonados.

No entanto, os valores de bens e serviços, que, em uma economia de mercado, são determinados pela oferta e pela demanda, eram controlados pelo governo.

Segundo o pesquisador Alexandre Cunha, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, quando os preços não cumprem sua função de sinalizar a disponibilidade do que demandamos, perde-se a ponte entre fornecedores, produtores e consumidores:

"Foi o que aconteceu na União Soviética. Faltava de tudo e sobravam coisas que ninguém queria."

A resposta do regime a crises geradas por falhas do modelo era aumentar o controle da economia pelo Estado, especialmente com a ascensão de Joseph Stalin ao poder em 1924, após a morte de Lênin.

Na virada para os anos 1930, vieram os planos quinquenais, que supostamente estabeleceriam metas e um horizonte factível para seu cumprimento, criando um ambiente de confiança.

Na prática, porém, eles eram revisados constantemente com base nas decisões de Stalin sobre quem deveria ser beneficiado ou punido segundo seu grau de lealdade.

Nas palavras do acadêmico Moshe Lewin: "Planejamento significava a necessidade de aumentar o escopo de controles administrativos, e o domínio de toda a economia pelo aparato estatal".

Por um período, os resultados impressionavam.

O crescimento econômico que se estendeu por três décadas e feitos como a expulsão dos nazistas e a largada na frente na corrida espacial conferiram à União Soviética o status de superpotência.

Mas a expansão robusta do PIB só foi possível por causa da realocação da mão de obra da agricultura para indústria. Ainda que os incentivos à produtividade nas novas fábricas não fossem altos, eles eram ainda menores no atrasado setor agrícola russo.

INOVAÇÃO SUFOCADA

O investimento em educação e no desenvolvimento industrial levou à formação de uma importante comunidade cientifica e acadêmica.

Isso garantiu ao país o pioneirismo em grandes invenções. Mas, como aponta o historiador Loren Graham, invenção é diferente de inovação e, sem a última, não há diversificação e progresso.

Instituições herdadas do período soviético freiam desenvolvimento - Colocação da Rússia em rankings internacionais*

Em 1964, dois soviéticos ganharam o Nobel em Física por pesquisas que contribuíram para a descoberta do laser, mas o país não teve proeminência no mercado internacional do segmento. O país foi o primeiro a colocar um satélite em órbita, em 1957, mas não se tornou relevante no setor de telecomunicações.

Na União Soviética, o espírito inovador era sufocado por ambiente político repressor e pela falta de incentivos à tomada de riscos.

Um exemplo disso citado por Acemoglu e Robinson foi o sistema de bônus adotado nos anos 1930 para trabalhadores que batessem metas de produção. O mecanismo era um desincentivo ao progresso tecnológico porque o investimento em inovação tiraria recursos da produção corrente, colocando as metas em risco.

O governo se dava conta da falta de resultados de políticas como essa e tentava reformulá-las. Mas, mesmo quando o sistema foi aprimorado para que a recompensa fosse proporcional aos benefícios potenciais da invenção, os efeitos foram limitados porque esse cálculo era baseado em preços controlados com pouco vínculo à realidade.

Sem incentivos ao risco, a elite soviética se acoplava ao gigante aparato estatal.

O equilíbrio da economia era garantido pela demanda de setores como agricultura e defesa pela produção da indústria pesada, cuja opulência sustentava a ditadura.

Segundo os acadêmicos Clifford Gaddy e Barry Ickes, "quanto mais metal, energia e serviços de transportes as fábricas consumissem, maiores o poder e os privilégios gozados por seus diretores".

A ineficiência na alocação de recursos gerada por esse modelo acabou conduzindo ao esgotamento do crescimento nos anos 1970 e à posterior queda do regime.

As reformas posteriores caminharam na direção da implementação de uma economia de mercado, com liberalização, privatização e instrumentos de estabilização monetária e cambial.

Mas, segundo Gaddy e Ickes, o legado do antigo regime, que pouco se importava com custos, ainda impõe restrições severas à produtividade. Eles citam a localização de importantes setores industriais em regiões remotas com temperaturas extremas.

Os custos para ligar esses fornecedores aos consumidores, dizem, "são como um imposto sobre o crescimento".

ADAPTAÇÕES

O que houve nas últimas décadas, mesmo com o avanço da iniciativa privada, foram adaptações do sistema de transferências de ganhos, por meio do qual setores ineficientes continuam a ser subsidiados pelos mais produtivos.

No início dos anos 2000, o novo regime parecia funcionar bem. Impulsionado pelo boom nos preços do petróleo e pelos efeitos de reformas feitas na década de 90, o crescimento voltou a decolar.

Mas a crise global de 2008 e o colapso no preço de commodities colocaram fim a esse processo, e o país enfrenta as restrições impostas pelo regime de Vladimir Putin, com baixos incentivos à inovação e à concorrência.

Em entrevista à Folha, Ickes ressaltou que, sem reforma política, é difícil imaginar que a estrutura de transferências de renda na economia mude, dada a importância das empresas "viciadas".

"A fonte do poder político é o controle sobre as transferências", diz Ickes.

Sem sinais de mudança do ambiente institucional no horizonte, a capacidade de a Rússia crescer hoje, de forma sustentada, é menor do que 2% ao ano, segundo Maximilien Lambertson, analista da consultoria Economist Intelligence Unit (EIU).

"É um cenário muito pobre comparado ao de outros países da região", afirmou.

A consequência esperada disso é que a renda per capita russa deverá continuar alta para os padrões de nações emergentes, mas não se aproximará tão cedo do padrão de vida do mundo desenvolvido


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