Folha de S. Paulo


Playboy, Bond e Kennedy eram 'estilo sofisticado para meninos' dos anos 50

Hugh Hefner, morto nesta quinta-feira (28), e a revista "Playboy", gigante da mídia e entretenimento criada por ele, eram inseparáveis. Ambos se alardeavam como emblemas da revolução sexual, escape da pudicícia e intolerância sexual da sociedade norte-americana.

Ao longo dos anos, homem e marca foram classificados como vulgares, adolescentes, exploradores e, por fim, anacrônicos. Mas Hefner foi um sucesso estrondoso ao surgir no mercado editorial, no começo dos anos 1950.

Seu timing não poderia ter sido mais perfeito.

"Gostamos de preparar coquetéis e um petisco ou dois, de colocar uma música suave no toca-discos e convidar uma amiga para uma discussão íntima sobre Picasso, Nietzsche, jazz, sexo", escreveu Hefner no primeiro número da revista.

A cena projetava o "estilo de vida sofisticado para meninos" que caracterizava aquela era, disse em entrevista o sociólogo Todd Gitlin, da Universidade Colúmbia, autor de "The Sixties".

"É parte de um conjunto que abarca os filmes de James Bond, John Kennedy, troca de casais, e exalta os homens jovens, vigorosos e indiferentes aos grilhões da responsabilidade social."

Hefner começou a atacar o puritanismo dos Estados Unidos em uma época na qual médicos se recusavam a receitar anticoncepcionais para mulheres solteiras e o código de autocensura de Hollywood ditava que até mesmo os casais casados dormissem em camas separadas nos filmes.

O empresário foi alvo de muita hostilidade, primeiro da parte dos guardiões da ordem social, nos anos 1950 —entre eles J. Edgar Hoover, diretor do Serviço Federal de Investigações (FBI)— , e mais tarde das feministas.

Na visão do cartunista Jules Feiffer, um dos primeiros colaboradores da "Playboy", os anos 1950 eram uma época na qual "as pessoas usavam terninhos apertados de flanela cinzenta, e trabalhavam em empreguinhos apertados como suas roupas."

"Não era possível falar politicamente", disse Feiffer no documentário de 1992 "Hugh Hefner: Once Upon a Time". "Não era permitido usar palavrões. O que a 'Playboy' representou foi um primeiro passo na direção de deixar tudo aquilo para trás."

Mas a revista nasceu mais por diversão do que por raiva. O primeiro editorial de Hefner, escrito na mesa da cozinha de sua casa em Chicago, proclamava que "não esperamos resolver os grandes problemas mundiais ou provar grandes verdades morais."

Ainda assim, Hefner guardava muito ressentimento pelas restrições sexuais de sua era, que, segundo ele, o haviam sufocado por toda a juventude.

ENFADONHO

Hugh Marston Hefner nasceu em 9 de abril de 1926, filho de Glenn e Grace Hefner, metodistas nascidos no Nebraska que se haviam transferido a Chicago. Décadas mais tarde, Hefner contaria a entrevistadores que cresceu "com muita repressão", e muitas vezes mencionava o fato de que seu pai era descendente de William Bradford, líder religioso puritano que fundou a colônia de Plymouth.

Quando criança, Hugh Hefner passava horas escrevendo histórias de terror e desenhando cartuns. Na Steinmetz High School, ele disse, "me reinventei", e se tornou um sujeito charmoso e descontraído, conhecido pelo apelido "Hef"; ele desenhava cartuns para o jornal da escola e era o líder do que definiu como "nossa gangue", sempre em busca de festas.

Na Universidade do Illinois, depois do serviço militar, ele editou uma revista de humor e criou uma coluna fotográfica chamada "Universitária do Mês".

Virgem até os 22 anos, Hefner se casou com uma colega de segundo grau, Millie Williams, e começou a vida adulta da maneira enfadonha característica dos anos 1950: trabalhando no departamento pessoal de uma empresa que fabricava caixas de papelão.

Quando Williams confessou que havia tido um caso antes de eles se casarem, Hefner disse a um entrevistador quase 50 anos mais tarde, "aquela foi a experiência mais devastadora que tive na vida."

Em "Playboy Philosophy", uma mistura de argumentos libertários e libertinos que Hefner publicou em 25 capítulos, começando em 1962, a mensagem dele era simples: a culpa era da sociedade. As causas que ele defendia —o direito ao aborto, a descriminalização da maconha e, acima de tudo, a revogação de leis sexuais que datavam do século 19— pareciam ousadas na época. Dez anos mais tarde, não tinham nada de excepcional.

"Hefner venceu", disse Gitlin em entrevista em 2015. "Os valores prevalecentes no país hoje, apesar de toda a reação conservadora, são essencialmente libertários, e isso descreve exatamente o que ele propunha na 'Playboy Philosophy'".

"São valores de 'laissez-faire'. De oposição à censura. De consumismo. De que o comprador dite as regras. De hedonismo. Em longo prazo, a importância de Hugh Hefner será a de ter servido como vendedor do ideal libertário", disse Gitlin .

A filosofia da Playboy pregava a liberdade de expressão em todos os seus aspectos, e por isso Hefner ganhou muitos prêmios pela defesa das liberdades civis. Ele apoiou causas sociais progressistas e perdeu alguns patrocinadores ao apresentar convidados negros em suas festas televisionadas, em um momento no qual ainda havia leis de segregação racial em vigor nos Estados Unidos.

Hefner disse ter pedido demissão da fábrica de papelão quando foi instruído a discriminar candidatos a emprego negros.

Depois, se tornou redator publicitário de uma loja de departamentos, e em seguida passou a trabalhar na publicidade da revista "Esquire". Hefner também foi gerente de circulação e promoção da revista infantil "Children's Activities".

O PLAYBOY

A persona de playboy que o empresário veio a adotar publicamente emergiu depois que deixou a mulher e os filhos, Christie e David, em 1959. Naquele ano, uma série de TV criada pela companhia, "Playboy's Penthouse", colocou Hefner, magrelo e enérgico, e seu cachimbo nas salas de visitas dos lares norte-americanos.

O cenário recriava o da mansão em que ele vivia em North State Parkway, Chicago, e ostentava confortos. Ele recebia músicos como Tony Bennett, Ella Fitzgerald e Nat King Cole, e intelectuais e escritores como Max Lerner, Norman Mailer e Alex Haley, e mulheres jovens e glamorosas circulavam pelo estúdio.

Muita gente questionava se a perspectiva da Playboy podia ser descrita como adulta. Harvey Cox Jr., teólogo da Universidade Harvard, definia a revista como "basicamente antissexual". Em 1961, na revista "Christianity and Crisis", Cox escreveu que "a 'Playboy' e suas imitadoras de menor sucesso não são 'revistas de sexo', de maneira alguma. Diluem e dissipam a sexualidade autêntica ao reduzi-la a um acessório e ao mantê-la a distância segura."

Em uma entrevista de TV em 1955, o apresentador Mike Wallace perguntou a Hefner, de cara feia, se "o que você está vendendo, na verdade, não é simplesmente uma revista suja?"

Broncas como essas soavam obsoletas no momento em que concorrentes mais cruas, como as revistas "Penthouse" e "Hustler", chegaram ao mercado, nos anos 1960 e 1970. A "Playboy" começou a mostrar os pelos púbicos de suas modelos, enquanto as rivais redobravam a ousadia, com artigos sobre preferências sexuais mais perversas e imagens em close-up que beiravam o ginecológico. Hefner decidiu, depois de debates furiosos entre os funcionários da "Playboy", que não buscaria competir com essas "inovações".

NOVA ERA

Hefner parecia estar se divertindo também no novo século. Em 2005, estreou um reality show no canal E! chamado "The Girls Next Door", embora sua presença consistisse basicamente em assistir às aventuras de suas três jovens e loiras namoradas na Playboy Mansion. Quando as três mulheres do elenco original deixaram o programa, ao final da quinta temporada, ele as substituiu por outras três —pouco depois pediu uma delas, Crystal Harris, em casamento.

Cinco dias antes do casamento entre Hefner, 85, e Harris, 25, em junho de 2011 —a cerimônia seria filmada pelo canal de TV a cabo Lifetime—, a noiva cancelou os planos. Hefner, que àquela altura já estava bem familiarizado com a mídia do século 21, tuitou que "Crystal mudou de ideia."

Mas Harris mudou de ideia (de novo), e os dois se casaram na véspera do ano novo de 2012. No aniversário do casamento, Hefner tuitou para seus 1,4 milhão de seguidores que "é bom estar apaixonado."

Em 2015, a circulação da "Playboy" havia caído para 800 mil cópias —ainda que, entre as revistas masculinas, só perdesse em circulação para a "Maxim", fundada em 1995.

Hefner manteve o posto de editor-chefe mesmo depois de concordar com a surpreendente decisão da "Playboy" de deixar de publicar fotos de mulheres nuas, também em 2015. Ele entregou o controle criativo da revista ao seu filho Cooper Hefner no ano passado.

Scott Flanders, presidente-executivo da Playboy Enterprises, reconheceu que o território da revista havia sido conquistado pela Internet: "Agora você está a um clique de distância de todo e qualquer ato sexual imaginável, e de graça. Ou seja, a essa altura, aquilo que costumávamos fazer ficou para trás".

Flanders, depois de assumir a presidência em 2009, tomou por foco o licenciamento da marca, reduzindo as operações da empresa e elevando seus lucros.

O site, liberto de qualquer traço de pornografia, desfrutou de imenso crescimento, e Hefner, que manteve seu título e cerca de 30% das ações da empresa, tuitava alegremente notícias e fotos sobre as muitas festas em sua mansão, além de centenas de fotografias de seu passado, nos anos de glória das décadas de 1960 e 1970.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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