Folha de S. Paulo


Jornalista conta como foi trabalhar fazendo entrevistas para a 'Playboy'

SOBRE O TEXTO Este trecho de Carlos Maranhão consta do livro "Histórias secretas - os bastidores dos 40 anos de 'Playboy' no Brasil" (Panda Books, 2016), no qual o jornalista conta narra experiência nos dois anos em que trabalhou na "Playboy" –cujo fundador, Hugh Hefner, morreu nesta quarta-feira (27), aos 91 anos– como um dos entrevistadores da revista.

*

UMA CONVERSA FRANCA

Durante uns bons dois anos, tive o privilégio de fazer em "Playboy" o trabalho mais prazeroso de minha vida jornalística. Não, eu não era encarregado de seduzir as mulheres tão desejadas pelos leitores, com o convite para que posassem usando apenas brincos e pulseira, e não estava ao lado do fotógrafo na hora em que elas tiravam a roupa. De certa forma, porém, meu serviço era tentar desnudá-las. Não só elas. Eles também. Fui um dos entrevistadores da revista.

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As longas entrevistas em forma de pingue-pongue haviam se tornado uma marca indelével da "Playboy" americana criada por Hugh Hefner. Tinham a ambição de apresentar de forma definitiva as histórias e as ideias de gente famosa, atores ou músicos, políticos ou empresários. Para isso, os repórteres dispunham de tempo e recursos. Podiam gastar meses para pesquisar, apurar, gravar e escrever, viajando para onde fosse necessário. O prazo incluía o tempo gasto no convencimento do alvo escolhido. Logo que foi lançada, a edição brasileira da maior publicação masculina do mundo seguiu a mesma receita. Claro que as condições seriam diferentes, mas nem tanto. Entraria nos anais da nossa "Playboy" a condição que o jornalista Hamílton Almeida Filho, conhecido como Hamiltinho, impôs para entrevistar o ministro Delfim Netto: teria que ir ao seu lado para Tóquio. Na primeira classe. E não é que o diretor de redação Mário de Andrade concordou?

Existia uma espécie de manual para "uma conversa franca com...", como se iniciava sempre o subtítulo padrão de duas linhas abaixo do nome do entrevistado. As instruções vinham da matriz de Chicago. Antes de mais nada, era preciso elaborar um questionário com 150 perguntas. Sabe lá o que são 150 perguntas? Você prepara sem dificuldade umas vinte ou trinta para qualquer entrevistado. Qual era seu sonho de infância? Que livro mudou sua cabeça? O que estava fazendo no momento em que soube que o presidente Kennedy foi assassinado? (Bem, para quem já era crescido no dia 22 de novembro de 1963.) Com algum esforço, chega-se às cinquenta perguntas. A partir daí, se quiser avançar, você deve assistir a todos os filmes da estrela de cinema, ler todos os livros do romancista e conversar com todos os amigos da modelo. Ou mais ou menos isso. Claro que, na entrevista, ninguém formularia tantas perguntas assim. O objetivo era, através delas, estudar, conhecer o personagem e estar preparado para enfrentá-lo. Enfim, fazer a lição de casa.

Em seu manual, o editor-executivo Berry Golson, responsável pela edição final das entrevistas entre 1973 e 1988, dava mais algumas indicações que deveriam ser seguidas:

- Ao pedir a entrevista, telefone dez vezes, não duas. Não use a palavra "entrevista". Diga que você está interessado em expor os pontos de vista da pessoa. (A repórter Mônica Bergamo insistiu tanto com a família do piloto Ayrton Senna - ele próprio simplesmente a ignorava - que um dia, cansado da perseguição e de vê-la acelerando na porta do escritório, seu pai encostou o carro no boxe e permitiu a ultrapassagem. "Não aguento mais você nos enchendo o saco desse jeito", disse seu Mílton da Silva, que tinha certo controle sobre a vida do filho. E marcou a entrevista. O resultado foi sensacional. Em determinado momento, Senna descreveu a visão que garantia ter tido, no final de uma curva, de Jesus Cristo em pessoa.)

- Não desligue o gravador antes de ir embora. (A célebre frase em que Jimmy Carter, então candidato a presidente dos Estados Unidos, confessou ter cometido "adultério no coração" foi dita na porta de sua casa, enquanto se despedia do repórter.)

- Use a "técnica do silêncio". Depois de uma pergunta sobre um tema mais delicado, fique calado. O entrevistado tenderá a preencher o silêncio com sua voz. Podem sair daí ótimas respostas.

Essas recomendações, como eu descobriria na prática, faziam sentido. A tal técnica do silêncio, por exemplo. Lembro de tê-la usado com êxito pelo menos duas vezes. Em uma delas, diante da atriz Bruna Lombardi. Na época, ela tinha 33 anos e gravava para a Globo a minissérie Grande Sertão, baseada no romance de Guimarães Rosa. Entre as perguntas inevitáveis de qualquer entrevista para "Playboy", havia esta: quando foi sua primeira vez? A indagação podia não ser respondida com pormenores, e em geral não era, mas havia a obrigação de formulá-la no momento certo. Na última sessão, ao final de um jantar no extinto restaurante paulistano Via Vêneto, percebi que ela estava relaxada com seu cálice de vinho do Porto e aproveitei para introduzir o assunto:

— Quando você descobriu o sexo?
— Lá pelos quatro anos.
— Quatro anos!?
— É evidente que não deixei de ser virgem com essa idade. Eu falo de sensualidade.

Fez uma pausa demorada e passou a mão nos cabelos, que estavam bem curtos e escuros para se caracterizar como o personagem Diadorim que interpretava na televisão. Mordi a língua e esperei que ela entrasse no tema. Demorou um pouco. Eu ouvia os passos dos garçons e os ruídos das mesas vizinhas. Funcionou. Obrigado pelo conselho, mister Golson.

— Mas por que você insiste? Quer saber quando foi a primeira vez?
— Sim.

Seguiram-se intermináveis segundos. Bebeu um gole, levantou a cabeça e olhou para mim.

— Eu tinha 16 anos. E tudo o que eu poderia dizer a mais sobre isso é que foi legal e aconteceu na hora em que eu queria.

Mais tarde, ela comentaria: "Pensando bem, são coisas que o leitor de "Playboy" quer saber. Eu não poderia decepcioná-lo".

Anteriormente, o ardil -vamos chamá-lo desse modo- já me ajudara. Eu havia sido escalado pelo redator-chefe Ricardo A. Setti para entrevistar o almirante-de-esquadra Maximiano da Fonseca. Poucos no futuro se lembrariam dele, mas naquele início da Nova República seu nome continuava literalmente na ordem do dia. Fora ministro da Marinha no Governo Figueiredo, o último do ciclo militar, e deixara o cargo depois de declarar que seus companheiros de farda não se opunham aos comícios em favor das eleições diretas para presidente da República, "se realizados com espírito ordeiro e tranquilo".

Ao voltar destituído para o Rio de Janeiro, trajado a paisana, seria recebido com honras no aeroporto por um contingente de 600 oficiais da Armada, em uma manifestação de apoio às suas posições. Decorrido menos de um ano, às vésperas da vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, a revista "Veja" divulgou que Maximiano tinha preparado um plano detalhado para que a Marinha resistisse a um eventual golpe de Estado que poderia ser dado em função do quadro sucessório. Ele nada falaria a respeito e o assunto àquela altura parecia esquecido.

Consegui seu número de telefone. Ele atendeu na hora e concordou em me receber. Marcou o encontro em Brasília, onde morava sua filha. Falamos por cerca de cinco horas, durante as quais ele tomou inúmeros cafezinhos, seguidos de cigarros que fumava sem tragar. Quando calculei que era a hora, entrei cautelosamente na questão que de fato interessava: o plano contra o golpe.

— Eu não posso confirmar.
— Mas o plano existia?

Uns quinze segundos de silêncio. Mais um cafezinho. Mais um cigarro. Eu quieto.

— Hummm... [Pausa.] Aquilo é assunto classificado. [Outra pausa.] A Marinha tinha uma posição firme, definida. Ou seja, a Marinha não embarcaria em golpes, em hipótese nenhuma.

Novo silêncio. Escutava-se o pio dos passarinhos que voavam à beira do Lago Paranoá.

— [Baixando o tom da voz, como se alguém pudesse ouvir.] Existe um exemplar só.
— Nenhuma cópia?
— Não, apenas um exemplar, rubricado por mim e lacrado. Mas não era só a Marinha que iria entrar, não. A Aeronáutica estava conosco. E grande parte do Exército. Olha, eu não posso falar sobre isso, se não me prendem. E eu vou contar o que contém um documento secreto que está trancado no cofre?

Contaria uma parte - a única que viria a público -, interrompendo novamente o silêncio que se seguiu.

— Que tal se a gente bloqueasse os portos de Santos e do Rio de Janeiro? Fecharíamos os dois maiores portos do Brasil. Pronto, aqui ninguém entra. Já imaginou o efeito? Eu lá no mar fechando o porto, eles em Brasília. Venham cá me combater!

Continuou por mais meia hora. Thank you again, Golson.

Ressalvadas exceções como essa, as melhores entrevistas foram com figuras que não se mostravam dispostas a concedê-las. Levei perto de um ano para receber a autorização de decolagem do presidente da Varig, Helio Smidt, que hoje batiza a estrada de ligação da Rodovia Ayrton Senna ao Aeroporto Internacional de Guarulhos, duas homenagens a entrevistados de "Playboy" portanto. A Varig era um assombro em 1989, quando nada parecia indicar o seu fim. Tinha uma frota de 87 aviões (entre eles catorze saudosos Electra II que operavam a Ponte Aérea entre São Paulo e Rio), 26 000 funcionários e 9 milhões de passageiros anuais. Voava para 43 cidades do país e 43 do exterior.

Seu serviço de bordo parecia inacreditável perto das barrinhas de cereal e pacotinhos de amendoim com os quais os viajantes das linhas domésticas do século XXI enganariam a fome. No voo 101, de Porto Alegre ao Rio, sem escalas, elegantes e educadas aeromoças serviam no almoço salmão defumado, filé mignon, queijinhos franceses e vinhos na temperatura certa em pratos de porcelona e copos de cristal, com talheres que não entortavam. Na primeira classe internacional, ofereciam champanhe Dom Pérignon e caviar beluga iraniano - antes do jantar -, mas lembrar disso já é covardia. No comando da maior empresa aérea do país, o pequeno e atarracado gaúcho Smidt era discreto e não gostava de aparecer. Quando enfim deu as boas-vindas a bordo, fez questão de mostrar a Varig inteira por dentro. Ele me acompanhou pessoalmente nos hangares, nas cozinhas, nas áreas de manutenção técnica, nas aulas de treinamento dos comissários e nos simuladores dos Boeings.

Em um trecho de turbulência na conversa, eu quis confirmar uma história. Seria verdade que Leonel Brizola, candidato a presidente da República, ganhara passe livre da companhia para viajar de graça pelo resto da vida? Dizia-se que se tratava de uma retribuição porque ele, como governador do Rio Grande do Sul, ajudara a empresa a se expandir. Um assessor, presente naquela etapa da entrevista, pediu que eu retirasse a pergunta. Apesar de incomodado, Smidt respondeu com honestidade. Disse que a empresa era apolítica, mas não cultivava a ingratidão. Sim, Brizola tinha cortesia permanente.

Dessa vez, segui o conselho de não desligar o gravador até ir embora. Estava deixando sua imensa sala junto do Aeroporto Santos Dumont quando vi uma foto do papa João Paulo II acomodado numa poltrona de DC-10 da Varig. Fora feita no dia em que o pontífice voltou de Manaus para Roma, na última etapa de sua primeira visita ao Brasil, em 1980. Smidt revelou que viajara com ele e ganhou um santinho de presente. Fiz então a derradeira pergunta:

— Como anfitrião, o que o senhor lhe ofereceu para beber?
— Ele aceitou um vinho do Porto e... uma vodcazinha, para falar a verdade.
— Polonesa, naturalmente?
— Não, Stolichnaya. Russa. A bordo nós só temos o melhor.

Entre as 22 entrevistas que realizei, poucas exigiram tanto trabalho de convencimento quanto a do ator Lima Duarte. Em 1989, quando o procurei, ele brilhava como o inesquecível Sassá Mutema na novela O Salvador da Pátria, contracenando com Maitê Proença. Parava o país. Teve audiência média de 63 pontos (74 no último capítulo), uma das maiores da história da televisão brasileira. Com tamanho sucesso e envolvido a semana inteira nas gravações, por que haveria de ficar horas a fio na frente de um repórter para repetir - ele assim imaginava - aquelas coisas que já havia dito incontáveis vezes?

Cada vez que eu ligava para seu apartamento em São Paulo, alguém atendia. Era ele. Mas identificava-se como outra pessoa, imitando vozes. Tinha uma habilidade extraordinária nesse truque. Eu ignorava que ele dublara o Manda-Chuva, a tartaruga Touché e outros personagens de desenho animado. "Meu patrão não está, volta daqui a duas semanas", falava com rouquidão. "O seu Lima ainda não veio, chame no mês que vem", dizia com vozinha fina na ligação seguinte. Assim continuou, até que o peguei em um intervalo do programa Som Brasil, que ele apresentava. "Não cansou de ficar me ligando?", rabujou com a voz verdadeira. Expliquei meu objetivo, argumentei e ele afinal cedeu. Disse que eu deveria me apresentar às sete da manhã do domingo seguinte no Aeroporto de Viracopos, onde ele embarcaria em um aviãozinho fretado para a cidade de Vera Cruz, no interior paulista, como convidado de um rodeio. Falaríamos na viagem.

Foi quase uma pegadinha. Madruguei para me apresentar no horário combinado. Sonolento, avisou que precisava tirar um cochilo rápido. Acordou no desembarque. A cidade inteira sairia às ruas para vê-lo cavalgar em um manga-larga do modesto aeroporto ao local do evento. Improvisou um rápido discurso, posou para fotos, deu autógrafos, almoçou com os organizadores - eu me limitava a observar - e avisou que iríamos embora. Antes, percebi que um dos anfitriões lhe entregou um maço de notas de dólares, seu cachê pela presença. Quando embarcamos no pequeno bimotor para voltar, aconteceu o que eu temia: refestelado em seu assento, não daria mais sinal de vida. Despertou em Viracopos. Mas, no saguão, estimulado por um café, abriu a guarda e marcou a primeira de nossas conversas.

A paciência compensou. Ele contaria deliciosas passagens de sua desconhecida convivência com o magnata das comunicações Assis Chateaubriand. Trabalhou ao lado dele, como funcionário da TV Tupi, no ocaso de sua vida. Chatô estava praticamente paralisado em uma cadeira de rodas, em consequência de um AVC, e não falava mais, exceto palavrões, que Lima Duarte reproduzia com a graça habitual. Ele parecia entender o que o patrão queria dizer e "traduzia" para as visitas. "Eu era seu cachorrinho da RCA Victor, a voz do dono", diria. Na ocasião, o escritor Fernando Morais escrevia sua biografia. Apesar da insistência, não quis lhe dar um depoimento. Deixou-o para "Playboy".

Em um belo dia, lembraria como criara o personagem Zeca Diabo, o matador da novela O Bem-Amado. "Eu precisava vesti-lo, mas os figurinos disponíveis no acervo da Globo não tinham vida", explicou. "Percorri então umas velhas tinturarias na região da Estação da Luz. Tem gente que deixa roupa para lavar e nunca mais vai buscar. Acabei encontrando o que queria." A caracterização ficaria completa com a voz fininha que lhe deu, semelhante à que usara para atender meus telefonemas, fingindo que não era ele. Zeca Diabo, pelos planos de Dias Gomes, autor da trama, deveria aparecer em cinco capítulos. Ficou até o final do folhetim, que se desdobraria em uma série e duraria perto de dez anos.

Em um novo momento, não escondeu a emoção ao confessar sua paixão pelo tango e por Carlos Gardel. Adquirira o gosto com a mãe, artista de circo mambembe que, nas suas recordações, "cantava com um vestido vermelho bem curtinho". Para meu espanto e com aparente seriedade, afirmou que Gardel não havia morrido em 1935, em um desastre aéreo na Colômbia, conforme a História registrava. "Ele continua vivo", assegurou. "Mora embaixo da minha cama." Não parecia estar brincando. Talvez irritado com minha incredulidade, disse que falara exatamente aquelas palavras para o escritor argentino Julio Cortázar. E qual foi a reação do autor de O Jogo da Amarelinha? "Ouviu com a maior atenção", respondeu.

Na despedida, indaguei o que o levara a mudar de ideia e dar a entrevista. "Consultei duas mulheres", esclareceu. "A Guta, Maria Augusta Matos, diretora do elenco da Globo, garantiu que sairia direitinho como eu sou. E a Maitê Proença disse que as entrevistas de "Playboy" são as melhores e as mais profundas da imprensa brasileira. Agora quero ler o resultado para ver se elas tinham razão."

CARLOS MARANHÃO, jornalista e escritor, é autor da biografia "Roberto Civita - o dono da banca" e foi editor e diretor de redação de "Playboy" nos anos 1980


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