Folha de S. Paulo


Empresas de infraestrutura do Brasil estendem tapete a investidor chinês

Isac Nóbrega - 31.ago.2017/PR
(Pequim - China 31/08/2017), Encontro com o Senhor Shu Yinbiao, Presidente da State Grid Corporate of China. Foto: Isac Nóbrega/PR ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
O presidente Michel Temer em encontro com executivos da chinesa State Grid, em Pequim

Quando Li Keqiang, o primeiro-ministro da China, estava tentando enfatizar a importância do relacionamento entre Pequim e o Brasil, ele escreveu sobre o amor dos chineses pelas novelas brasileiras, como por exemplo "Escrava Isaura", sucesso dos anos 1970. A novela, que foi seguida entusiasticamente pela audiência chinesa, acompanha a bela e modesta Isaura em suas tortuosas batalhas contra a adversidade.

Narrativa semelhante poderia ser aplicada, com muito menos ardor romântico, à gangorra do relacionamento econômico entre o Brasil e a China. O ardor que acompanhou o boom nas exportações de commodities à China, nos anos iniciais do milênio, já havia se dissipado em 2015, quando o colapso econômico deixou milhões de brasileiros desempregados.

No mesmo artigo em que elogiava Isaura, porém, em 2015, Li expressava otimismo. Os dois "parceiros naturais" encontrariam um novo caminho que transcenderia a dependência quanto ao comércio de commodities e enfatizaria o investimento chinês em infraestrutura, para ajudar o Brasil a evitar "armadilha da renda média", escreveu Li.

"A China está disposta a participar na construção da rede de ferrovias de carga, da rede de energia, da rede de comunicação, e em outros grandes projetos de construção brasileiros, e a cooperar com o lado brasileiro em toda a cadeia industrial, na construção naval, indústria química, exploração de gás natural e petróleo, e outras áreas", acrescentou o primeiro-ministro chinês.

Nos últimos 18 meses, Pequim começou a cumprir essas promessas de maneira enfática. Kevin Gallagher, professor de política mundial de desenvolvimento na Universidade de Boston, diz que uma nova fase está em curso no relacionamento comercial entre a China e o Brasil.

"O boom acabou no que tange às commodities, mas está acontecendo uma virada na direção da infraestrutura, serviços financeiros e certos segmentos da indústria".

Uma das expressões mais claras da nova disposição chinesa surgiu em junho deste ano, quando Pequim concordou em destinar US$ 15 bilhões a um fundo bilateral de US$ 20 bilhões destinado primordialmente a projetos de infraestrutura. Instituições financeiras brasileiras devem prover os US$ 5 bilhões adicionais para o fundo, proposto inicialmente por Li em sua visita ao Brasil em 2015.

"A China vem agindo verdadeiramente rápido para estabelecer o fundo de infraestrutura de US$ 20 bilhões, porque deseja colocar [o investimento] em ação", diz Gallagher. "O Brasil, é claro, está pronto a aceitar, porque no momento o custo do capital no país é alto. O Brasil tem sérias deficiências de infraestrutura que não serão cobertas pelo capital privado ou mesmo por bancos de desenvolvimento, e por isso o dinheiro chinês é muito necessário".

O escopo das necessidades de infraestrutura brasileiras —e portanto a dimensão da oportunidade para as empreiteiras chinesas ávidas por projetos— é imenso. O Global Infrastructure Hub, uma iniciativa de pesquisa do Grupo dos 20 (G20), estima que o Brasil necessite instalar pelo menos US$ 2,7 trilhões em infraestrutura até 2040, mas que ao ritmo atual de investimento só atingirá US$ 1,5 trilhão desse valor, o que deixa um deficit de US$ 1,2 trilhão.

Pressões como essas, reforçadas por aquelas que a recessão econômica do Brasil cria, resultaram em maior abertura ao controle e construção de infraestrutura por estrangeiros. Os grandes grupos estatais chineses aproveitaram a oportunidade, abocanhando ativos de infraestrutura importantes e preparando lances para muitos outros projetos, dizem autoridades e analistas.

"Alguns países não permitem investimento da China nesses setores [infraestrutura básica], mas não é esse o caso no Brasil", disse Roberto Jaguaribe, presidente da Apex Brasil, agência de promoção do comércio internacional e investimento brasileira. "Estamos muito abertos aos investimentos chinesas em infraestrutura".

Jaguaribe, antigo embaixador brasileiro à China, não duvida da importância macroeconômica dos investimentos chineses, em um momento no qual o Brasil luta para se libertar da profunda recessão que se seguiu ao boom nas commodities. "A China é o maior investidor no Brasil a cada ano, nos anos recentes, e acreditamos que esses investimentos venham a subir ainda mais", ele disse.

Em números concretos, as aquisições comandadas pelos chineses no ramo de infraestrutura montaram a US$ 5,7 bilhões nos quatro primeiros meses de 2017, respondendo por quase 40% da entrada total de investimentos no Brasil, de acordo com a consultoria Dealogic. A Câmara de Comércio Brasil-China, em São Paulo, prevê que o número possa atingir US$ 20 bilhões em 2017, 70% acima do total de 2016.

A importância do investimento chinês em infraestrutura pode ser vista claramente nos setores de geração e transmissão de energia. A State Grid Corp, uma estatal chinesa de transmissão de energia e maior companhia mundial de infraestrutura, adquiriu participação controladora na CPFL Energia, no ano passado. Isso confere à empresa chinesa, que já operava quase 10 mil quilômetros de linhas de transmissão de energia no Brasil, a responsabilidade por uma das maiores porções da grade de energia brasileira.

Na geração de energia, a China Three Gorges Corporation adquiriu os direitos de operação de duas grandes usinas hidrelétricas brasileiras, Jupiá e Ilha Solteira, por 30 anos, pagando US$ 3,7 bilhões, no final de 2015. E isso pode ser apenas o começo de uma onda de transações.

Diversas outras companhias chinesas de energia, entre as quais a Shanghai Electric, China Southern Power Grid e Huaneng, estão estudando apresentar ofertas por ativos do setor de energia brasileiro que serão colocados à venda, dizem analistas.

Em certo sentido, os chineses estão desempenhando o papel de salvadores. A dívida de algumas das companhias brasileiras de eletricidade estava subindo para níveis insustentáveis, exacerbada pela recessão e por uma medida do governo que forçou as companhias a reduzir tarifas para renovação de seus contratos por 30 anos, em 2012. Uma seca severa entre 2013 e 2015 reduziu o volume de água nas represas brasileiras, prejudicando muito as companhias hidrelétricas, e os clientes se viram forçados a substituir as fontes hidrelétricas de energia por fontes termoelétricas.

A dimensão estratégica disso é que Pequim encara o Brasil como aliado importante entre os países em desenvolvimentos, e um mercado potencialmente crucial, com 200 milhões de habitantes, além de como plataforma para oportunidades comerciais no restante da América Latina. Que o Brasil esteja situado em uma região de interesse estratégico para os Estados Unidos, cujo relacionamento com a China está cada vez mais difícil, só serve para aumentar o valor dos elos com os brasileiros, aos olhos de Pequim.

No entanto, existem preocupações residuais, diz Jaguaribe. As empresas chinesas de infraestrutura terão de ser cuidadosas quanto às práticas trabalhistas e normas ambientais e sociais brasileiras, se continuarem a adquirir grandes porções da infraestrutura do país, ele adverte. "A maior barreira é que elas não podem agir no exterior como fazem na China", diz Jaguaribe. "Alguns países permitem que o façam, mas não é o que acontece no Brasil".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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