Folha de S. Paulo


Bíblia da contracultura, revista 'Rolling Stone' será colocada à venda

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Capas Rolling Stone com Miley Cyrus, Kurt Cobain e John Lennon e Yoko: revista será colocada à venda
Capas da "Rolling Stone" com John Lennon e Yoko, Kurt Cobain e Miley Cyrus (esq. p/ dir.)

Em 1967, num loft em San Francisco, um jovem de 21 anos chamado Jann Wenner criou uma revista que se tornaria a bíblia da contracultura para a geração baby boom [os americanos nascidos entre 1946 e 1964]. A revista "Rolling Stone" passou definir o que era cool, cultivou ícones da literatura, e produziu capas que criaram estrelas e se tornaram um espaço tão cobiçado que até inspiraram uma canção.

Mas o momento adverso que o setor editorial está vivendo e alguns erros de estratégia dispendiosos abalaram a posição financeira da revista, e uma reportagem dúbia publicada três anos atrás sobre um estupro coletivo que não foi provado, no campus da Universidade da Virgínia, maculou gravemente a reputação jornalística da "Rolling Stone".

Assim, depois de um reino de meio século que o conduziu ao reino dos astros do rock e das celebridades que enfeitavam as capas de sua revista, Wenner vai colocar à venda sua participação controladora na "Rolling Stone", abandonando o controle de uma publicação que ele lidera desde que foi fundada.

Wenner vinha tentando havia muito tempo se manter como editor independente em um negócio que favorece escala e amplitude. Mas admitiu em entrevista na semana passada que a revista que comanda há tanto tempo enfrentaria um futuro incerto e difícil caso se mantivesse como publicação independente.

"Amo meu trabalho, ele me agrada, e tem me agradado há muito tempo", disse Wenner, 71. Mas abrir mão do controle, ele acrescentou, era "a coisa inteligente a fazer".

Os planos de venda foram desenvolvidos por Gus Wenner, 27, o filho de Jann, que reduziu agressivamente os ativos da Wenner Media, a controladora da "Rolling Stone", em resposta a pressões financeiras. Os Wenner recentemente venderam as duas outras revistas da empresa, "Us Weekly" e "Men's Journal". E no ano passado venderam participação de 49% na "Rolling Stone" à BandLab Technologies, uma empresa de tecnologia para música sediada em Cingapura.

Tanto Jann quanto Gus Wenner, respectivamente presidente e vice-presidente de operações da Wenner Media, afirmaram que pretendem continuar na "Rolling Stone". Mas também afirmaram que a decisão final quanto a isso pode caber ao novo proprietário.

Ainda assim, a potencial venda da "Rolling Stone" —que está à beira de seu 50º aniversário, aliás— sublinha até que ponto o cenário da mídia impressa se tornou complicado, diante da perda de faturamento com a publicidade em papel e reduções de circulação.

"Há um nível de ambição que não temos como realizar sozinhos", disse Gus Wenner na semana passada em uma entrevista na sede da revista, na região central de Manhattan. "Por isso estamos sendo proativos e tentando nos antecipar".

"O setor de revistas é completamente diferente do que foi no passado", ele acrescentou. "As tendências vão todas em uma só direção, e estamos muito conscientes disso".

A decisão dos Wenner é mais um sinal claro de que a era dos editores célebres está chegando ao fim. Este mês, Graydon Carter, editor da revista "Vanity Fair" e socialite e astro por direito próprio, anunciou que planejava deixar seu posto na revista, depois de 25 anos. Robbie Myers, editora da revista "Elle", Nancy Gibbs, da revista "Time", e Cindi Leive, da revista "Glamour", também anunciaram que deixariam seus postos, na semana passada.

Anthony DeCurtis, veterano crítico de música e colaborador da revista "Rolling Stone" há muito tempo, disse que jamais imaginou que Jann Wenner a venderia.

"Aquela sensação de controle firme da revista por seu editor –é isso que vai se perder, por lá", ele disse. "Não sei quem seria capaz de ocupar o posto e fazer a mesma coisa".

A Wenner contratou consultores financeiros para estudar uma possível venda, mas o processo está apenas começando. A participação da BandLab na companhia também pode complicar as coisas. Nem Jann e nem Gus Wenner mencionaram possível compradores, mas uma das possibilidades é a American Media, editora de revistas comandada por David Pecker, que adquiriu a "Us Weekly" e a "Men's Journal".

Os Wenner disseram que devem encontrar diversas oportunidades, e Jann afirmou que esperava encontrar um comprador que compreenda a missão da "Rolling Stone" e tenha "muito dinheiro".

A BÍBLIA DO ROCK E DA CONTRACULTURA

"A 'Rolling Stone' desempenhou papel muito importante na história de nossa era, social, política e culturalmente", ele disse. "Queremos reter essa posição".

Jann Wenner tentou lançar outras revistas, ao longo das décadas, entre as quais "Outside", dedicada às pessoas que gostam de passar muito tempo ao ar livre, e "Family Life". Mas foi a "Rolling Stone" que ajudou a guiar e a definir uma geração.

"Quem é que viveu os anos 60, 70, 80 e 90 e não se sente um pouco melancólico em um momento como esse?", disse Terry McDonnell, um dos principais editores da "Rolling Stone" e de outras das revistas de Wenner.

A "Rolling Stone" ocupava suas páginas com artigos muito longos, de alguns dos principais porta-vozes da contracultura, entre os quais Hunter Thompson —cujo "Fear and Loathing in Las Vegas" foi publicado em duas partes pela revista— e Tom Wolfe. Foi lá que começou a carreira da fotógrafa Annie Leibovitz, responsável durante muitos anos pelas eletrizantes imagens das capas da revista, entre as quais uma emblemática foto de John Lennon, nu e agarrado a Yoko Ono, em 1981.

A cobertura de música em todas as suas formas —notícias, entrevistas, resenhas— servia de cerne à "Rolling Stone", mas a influência da revista se estendia aos campos da cultura pop, entretenimento e política. Baluarte da ideologia progressista, a revista se tornou parada obrigatória para os candidatos à presidência pelo Partido Democrata —Wenner entrevistou diversos deles pessoalmente, entre os quais Bill Clinton e Barack Obama— e nunca poupou críticas em suas avaliações dos republicanos.

Em 2006, a "Rolling Stone" definiu George W. Bush como "o pior presidente da história". Mais recentemente, a revista tratou do primeiro-ministro canadense Justin Trudeau em uma reportagem de capa, com a manchete "por que ele não temos um presidente como ele?"

A revista também publicou reportagens políticas altamente elogiadas, entre as quais um artigo sobre o banco Goldman Sachs, em 2009, pelo jornalista Matt Taibbi, que definiu a empresa como "uma grande lula vampira sufocando a humanidade". No ano seguinte, a revista publicou um artigo com o título "O General Descontrolado", que pôs fim à carreira do general Stanley McChrystal.

Mas aquela talvez tenha sido a última capa da revista que lhe valeu elogios pelo qualidade de seu jornalismo. E a reputação da revista como formadora de opinião sobre música já vinha sendo erodida havia muito tempo, porque Wenner se aferrava ao passado, destacando em suas capas artistas da geração dele, apesar do surgimento de novas estrelas. Músicos como Paul McCartney, Bruce Springsteen e Bob Dylan continuaram a conquistar capas na revista mesmo em anos recentes.

A reputação da "Rolling Stone" sofreu um abalo devastador quando a revista teve de retirar um artigo de 2014 sobre um estupro coletivo na Universidade da Virgínia, depois que sua veracidade foi impugnada. Um relatório altamente crítico sobre o artigo, da Escola de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Colúmbia, apontou para falhas graves de apuração. O artigo gerou três processos por difamação contra a "Rolling Stone", um dos quais resultou em um julgamento muito acompanhado, no ano passado, que terminou com a concessão de US$ 3 milhões em indenização ao queixoso por um júri federal.

O quadro financeiro também está complicado. Em 2001, Wenner vendeu uma participação de 50% na "Us Weekly" ao grupo Disney por US$ 40 milhões, mas cinco anos mais tarde tomou um empréstimo de US$ 300 milhões para recomprá-la. O acordo sobrecarregou a empresa de dívidas por mais de uma década, impedindo-a de investir tanto quanto poderia em suas revistas.
Ao mesmo tempo, a receita da publicidade impressa e as vendas em banca da "Rolling Stone" começaram a cair. E apesar de os leitores estarem recorrendo cada vez mais à Web em busca de notícias e entretenimento, Wenner se mantinha cético quanto à nova mídia, demonstrando uma teimosia que prejudicou sua empresa.

A Wenner Media sempre foi uma editora de revistas pequena. Mas a venda da "Us Weekly" e da "Men's Journal", que juntas produziam cerca de três quartos de seu faturamento, enfraqueceu ainda mais a sua posição.

FIM DE UMA ERA

Assim, a venda da "Rolling Stone" pode representar o episódio final da carreira de Jann Wenner, coroando sua improvável ascensão de universitário maconheiro que abandonou os estudos na Universidade de Berkeley a magnata grisalho da mídia. Admirador de John Lennon e de donos voluntariosos de jornais como William Randolph Hearst, Wenner —que criou sua revista com US$ 7.500 em dinheiro emprestado, em sociedade com seu mentor, o jornalista Ralph Gleason— alternava momentos de idealismo e de revolta, criando uma publicação cujo objetivo era servir de guia para a contracultura mas ao mesmo tempo convivendo com superastros.

Ele certa vez se vangloriou de ter recusado uma oferta de US$ 500 milhões pela "Rolling Stone", muito mais do que pode sonhar receber por ela hoje. (A BandLab pagou US$ 40 milhões pelos 49% da revista adquiridos no ano passado.)

Embora tenha dito que ainda sente profundo apego pela "Rolling Stone", Wenner colocou o destino da revista firmemente nas mãos de seu filho, e parece conformado em permitir que outros determinem o futuro da publicação.

"Acho que é hora de deixar que os jovens comandem", ele disse.

Sentado em seu escritório no segundo andar, cercado de uma coleção de artefatos da era do rock, Gus Wenner expressou esperança em que um novo proprietário ofereça os recursos de que a "Rolling Stone" precisa para evoluir e sobreviver.

"É o que precisamos fazer, como empresa", ele disse. "É o que precisamos fazer para desenvolver a marca."

Em seguida, como só alguém que passou a vida no mundo do rock poderia fazer, ele apontou para um livro de letras de Bob Dylan, em sua mesa, e citou: "Se você não está ocupado nascendo, está ocupado morrendo".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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