Folha de S. Paulo


Cade quer estimular ações de consumidores contra cartéis

Pedro Ladeira/Folhapress
O presidente do Cade, Alexandre Barreto, em seu gabinete
O presidente do Cade, Alexandre Barreto, em seu gabinete

Para tentar estimular indenizações civis e potencializar os efeitos das multas aplicadas, o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) definirá, nas próximas semanas, regras para compartilhamento de provas de cartéis julgados pelo tribunal com consumidores em geral.

Uma pessoa que adquiriu uma geladeira, por exemplo, fabricada ou vendida por empresas envolvidas em cartel, poderá ir à Justiça com provas obtidas pelo Cade para exigir reparação. Em geral, um cartel eleva os preços de produtos e serviços em 20%.

"Nos Estados Unidos, essa é uma prática madura [as ações cíveis para reparação]. Aqui ela é incipiente", afirmou em entrevista à Folha o presidente do Cade, Alexandre Barreto. "A maior dificuldade [para os consumidores] é a comprovação dos prejuízos. O Cade tem essas informações e quer fornecê-las aos cidadãos e às empresas que compram insumos de empresas que praticaram cartel."

Segundo Barreto, a ideia surgiu após discussão entre os conselheiros do órgão de defesa da concorrência sobre a dosimetria das multas em um caso envolvendo a prática de cartel numa licitação de serviços de manutenção predial, há algumas semanas.

Os conselheiros Cristiane Alkmin e João Paulo de Resende defenderam que as multas contra cartéis eram brandas porque vêm sendo calculadas tendo o faturamento no ramo de atividade como parâmetro e só no ano anterior à abertura do processo de investigação no Cade. Muitos cartéis atuam por décadas. O do sal, por exemplo, durou mais de vinte anos.

Segundo os dois conselheiros, a legislação brasileira determina que a multa nunca pode ser inferior à vantagem auferida. Caso contrário, valerá a pena formar cartéis.

Alkmin e Resende foram voto vencido, e o Cade decidiu não fazer o cálculo da vantagem auferida pelos cartéis –algo que exigiria mais funcionários e tempo, segundo os demais conselheiros.

No entanto, Barreto propôs medidas coordenadas que pudessem ampliar os efeitos das multas de outras maneiras. Segundo ele, hoje o Cade já pode proibir as empresas de participar de licitações, parcelar débitos tributários e levantar empréstimos em bancos públicos.

Além da multa aplicada às empresas do cartel de administração predial, Barreto decidiu recomendar ações contra as empresas a outros órgãos de controle, como o TCU (Tribunal de Contas da União) e os Tribunais de Contas de Estados e municípios em que o grupo atuou.

"Defendo a atuação em rede dos órgãos de controle. Cabe ao TCU calcular dano. O órgão já tem os profissionais para desempenhar esse trabalho", disse Barreto. "Já representamos contra essas empresas junto a esses órgãos."

IMPACTO

A partir de agora, eles deverão fazer suas próprias investigações a partir das provas fornecidas pelo Cade para exigir reparações. "Consegue imaginar qual é o impacto dissuasório para uma empresa? Com essas medidas, uma empresa vai pensar diversas vezes antes de formarem cartel", afirma Barreto.

O presidente do Cade acredita que a "central de provas" estará funcionando até o final do primeiro semestre de 2018. Para isso, será preciso que o conselho decida os procedimentos necessários para a prestação desses serviços.

"Não sabemos se será um sistema novo que poderá ser acessado pela internet automaticamente ou se a pessoa deverá solicitar ao Cade, tudo isso vai ser decidido por meio de uma resolução", disse.

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Folha - Recentemente, o conselho discutiu uma nova metodologia para aumentar as multas contra cartéis, mas foi decidido que tudo fica como está. Por quê?
Alexandre Barreto - A lei não deixa claro se o critério para a dosimetria de uma multa deve ser o limite de 20% do faturamento da empresa no ano anterior à instauração do processo ou se deve ser a vantagem auferida [com o cartel]. O lucro obtido pelas empresas com o cartel não pode ser maior do que a pena. Por outro lado, não é fácil operacionalizar o cálculo da vantagem auferida.

Mas ao manter como está, os infratores podem estar pagando menos do que ganharam com o crime, não?
Por isso, optamos por uma tentativa de compor as diferentes visões dentro do conselho para que a sanção aplicada alcance o objetivo de fazer as empresas pensarem duas vezes antes de praticar o crime de cartel. Além da multa, o Cade pode e deve utilizar ferramentas sancionadoras que já possui como a proibição da empresa infratora de participar de licitações com a administração pública e de exercer o comércio. O Cade também pode impor a cisão da sociedade, proibir a contratação de empréstimos com bancos públicos, um arsenal sancionatório já bastante grave. Mas temos também outras instituições que, junto conosco, podem participar desse processo [de potencializar a sanção].

Como assim?
Discutimos a dosimetria das multas no cartel em licitações públicas de manutenção predial há cerca de duas semanas. Depois da condenação, representamos ao TCU [Tribunal de Contas da União], a tribunais estaduais e ao tribunal do município de São Paulo. Também acionamos o Ministério Público Federal e nos Estados. Com nossa representação, o TCU, por exemplo, deverá abrir uma investigação para exigir o ressarcimento do dano ao erário. Eles têm centenas de profissionais especializados nesse cálculo.
Essas medidas afetam empresas e a União. Como ficam os consumidores?

Aí entra uma segunda possibilidade [de ampliação do poder de sanção] que é o incentivo para ações civis de reparação de dano. Pense em um cartel de um bem de consumo, uma geladeira, por exemplo. Todo mundo guarda a nota fiscal, certo? Se ficar comprovado no Cade que, no período em que o consumidor adquiriu a geladeira, houve cartel, ele poderá usar essas provas e, em posse de sua nota fiscal, exigir reparações na Justiça. Essas ações poderiam ser individuais ou coletivas. No Brasil, se observa que isso ainda é incipiente porque uma das maiores dificuldades é a comprovação do prejuízo com o cartel. O Cade dispõe dessas informações, que podem ser emprestadas.

Como seria isso?
O conselho vai discutir nas próximas semanas, uma resolução que disciplinará o empréstimo dessas provas.

Essas medidas compensariam então a manutenção do cálculo da multa como vem sendo feita até hoje?
Há um efeito dissuasório gigantesco com isso. As empresas vão pensar muito antes de praticar cartel.

Haverá um sistema na internet para que o cidadão procure as provas ou será preciso pedir ao Cade, a exemplo do que ocorre pela Lei de Acesso à Informação?
É o que vamos definir depois de acertarmos a resolução. Hoje já temos um sistema eletrônico em que os documentos dos processos ficam disponíveis, mas não sabemos como será neste caso.

De certa forma, essa ação coordenada não é uma novidade para o senhor, que negociou com a força-tarefa da Lava Jato para que o TCU pudesse cobrar a reparação de danos no caso da usina de Angra 3 sem ferir o acordo de leniência feito pelo Ministério Público. Por que replicar isso no Cade?
Temos diversas entidades por vezes fazendo tarefas próximas e, por vezes, a mesma tarefa. Há necessidade, até em face da enorme crise fiscal, de aumentar a eficiência do Estado. Se duas pessoas são donas do negócio, acaba que ninguém é dono do negócio. A sobreposição leva ao desperdício de recursos e, pior, à lacuna de atuação.

Como estão as conversas com o Banco Central, com quem o Cade trava uma disputa de competência no Supremo que já dura décadas?
Há uma dúvida sobre qual deve ser a atuação do Cade e a do BC nas investigações de condutas anticompetitivas e nos atos de fusão e aquisição entre instituições financeiras. Na minha segunda semana na presidência do Cade, procurei a diretoria do Banco Central para discutirmos a medida provisória que institui a leniência para o BC e para a CVM. Me coloquei à disposição, porque o Cade tem mais de 15 anos de experiência com leniências de empresas. Aproveitei a ocasião e coloquei esse outro problema. Tivemos uma conversa franca sobre a necessidade de uma ação conjunta entre os dois órgãos e na definição clara dos papéis de cada um para evitarmos desperdício e darmos segurança jurídica para os processos.

Na prática, o que acertaram?
Como os dois órgãos são colegiados, houve uma decisão conjunta [documento formal] dos dois órgãos indicando a disposição de avançarmos. Depois disso, tivemos outras reuniões e já estive com o presidente do BC [Ilan Goldfajn], que manifestou seu apoio para resolvermos essa questão.

O senhor também participa de uma tentativa de coordenação entre diversos órgãos envolvidos nas leniências da Lava Jato. Isso porque houve casos de divergências entre TCU e Ministério Público e, agora, entre a Transparência e o TCU. Como resolver isso?
Criamos um grupo de trabalho. Primeiro com cinco órgãos (Transparência, TCU, MP, Cade e AGU). Logo mais entram BC e CVM [se aprovada a medida provisória 784]. Hoje temos diferentes agentes estatais que podem investigar o mesmo fato, objeto da leniência. E isso cria uma insegurança jurídica para o leniente. Se uma empresa firma a leniência com a Transparência não há garantias de que, em um segundo momento, o TCU, o MP ou a AGU não atuem paralelamente dentro de suas competências e puna aquela empresa que fechou o acordo com o MP.

Isso ocorreu com as empresas do cartel da usina de Angra 3?
Sim. Participei das negociações com a força tarefa da Lava Jato em Curitiba como auditor do TCU. No acordo [dentre os dois órgãos], o tribunal iria respeitar os termos da leniência fechado pelo MP com as empreiteiras para que pudesse cumprir seu papel legal de exigir a reparação integral do dano ao erário. Nessa discussão, por exemplo, o TCU abriu mão de boa parte de seu arsenal sancionatório como a declaração de inidoneidade, aplicação de multas e juros de mora, em favor da força tarefa. Para mim, esse é o modelo que devemos seguir para que a leniência não perca sua eficácia no país. Senão, o instrumento da leniência está fadado ao desaparecimento em alguns anos.

Mas o que garante que esse grupo de trabalho vá resultar em uma ação conjunta?
Defendo que é preciso ter um memorando de entendimentos [para não ficar solto]. Vejo boas intenções para que isso ocorra. No caso entre TCU e força tarefa as negociações resultaram em um acórdão no tribunal.

A lei diz que cabe ao Ministério da Transparência fechar acordos de leniência, que vinham sendo fechados pelo Ministério Público. Acha que isso é um problema?
O MP é um ator essencial. Nada impede que um órgão administrativo, por meio de sua leniência, forneça informações para que o MP atue na esfera penal. Aliás, desde o primeiro momento, o Cade tem trabalhado dessa forma. Muito embora isso não esteja estabelecido em lei, o MP é signatário das leniências firmadas pelo Cade.

Mas o MP tem resistência ao TCU e demais órgãos de governo porque alguns estão sendo até investigados.
No caso de Angra 3 as conversas foram tranquilas e posso falar porque participei.

Por que o Cade participa das discussões da medida provisória que define o processo de leniência de instituições financeiras no BC e na CVM?
Participamos de forma acessória. Apresentamos nosso modelo como referência.

O Cade também tem de contribuir com o Programa de Parcerias em Investimentos (PPI). Mas como isso vai funcionar?
Teremos de contribuir para que os editais não só tragam mais concorrentes como também criem mecanismos que impeçam o vencedor de cometer abusos na exploração dos serviços, já que estamos falando de monopólios naturais [concessões]. Os processos estão sendo criados internamente. Temos uma preocupação de que isso não se volte contra o Cade. O órgão não vai dar um cheque em branco e ficar comprometido depois caso tenha de investigar exatamente os casos que ajudou na modelagem.

A delação da JBS, que envolveu o Cade em uma caso de propina, prejudicou a imagem?
Isso foi alguns meses antes de minha chegada ao conselho, mas posso assegurar que não prejudicou nossa atuação. Nada foi produzido dentro do Cade que tenha auxiliado [a empresa]. Dou esse assunto por encerrado.


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