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Acordo para cortar subsídio agrícola é difícil, afirma OMC

Salvatore Di Nolfi/Keystone via AP
Brasileiro Roberto Azevêdo é reeleito diretor-geral da OMC
Roberto Azevêdo, diretor-geral da OMC

É praticamente impossível que a proposta conjunta de Brasil e União Europeia para reduzir os subsídios domésticos na agricultura seja aprovada na 11 conferência ministerial da OMC (Organização Mundial do Comércio), que vai ocorrer de 10 a 13 de dezembro, em Buenos Aires.

A opinião não vem de um pessimista com o sistema multilateral de comércio, mas do brasileiro Roberto Azevêdo, diretor-geral da OMC. Ele ressalta que toda proposta é muito bem-vinda, mas que os modelos de aplicação de subsídios agrícolas ainda são muito diferentes entre os países.

"Não há a possibilidade de existir uma proposta que seja imediatamente apresentada e consensuada", disse Azevêdo à Folha, em Brasília, logo após se reunir com o presidente Michel Temer.
Ele acredita que o objetivo de brasileiros e europeus seja dinamizar as conversas sobre esse tema.

Brasil, União Europeia, Colômbia, Peru e Uruguai apresentaram em julho em Genebra, sede da OMC, uma proposta que, em linhas gerais, propõe estabelecer o mesmo limite de apoio doméstico à agricultura, proporcional a um porcentual da produção, para todos os países.

A proposta pegou os especialistas de surpresa, porque os europeus, tradicionais importadores e subsidiadores, sempre discordaram dos países do Mercosul, que são grandes exportadores agrícolas. Na visão de Azevêdo, a UE já está reformando seus programas de apoio à agricultura por questões internas e gostaria que os outros países também se "desarmassem".

Confira a entrevista de Azevêdo à Folha.

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Folha - O senhor vai manter a estratégia de fechar acordos em temas específicos na conferência ministerial de Buenos Aires?
Roberto Azevêdo - Minha experiência demonstra que é muito difícil programar uma ministerial. Quando temos todos os ministros reunidos, o desfecho pode ser inesperado. Também não existem duas conferências iguais.
No entanto, essa estratégia demonstrou ser eficaz. Nos últimos tempos, aprendemos que é preciso ter flexibilidade sobre o conteúdo e a cobertura geográfica das negociações.

O conteúdo deve ser flexível o suficiente para que muitos países participem da iniciativa. E é preciso considerar que os 164 países membros estão em momentos políticos e de desenvolvimento diferentes.Também é preciso ser flexível em termos geográficos. Se alguns países não quiserem ou não puderem participar de uma iniciativa, vamos fazer com aqueles que enxergam naquele acordo um valor agregado para sua economia.

Nesse contexto, ainda faz sentido falar em Rodada Doha ou esse modelo deveria ser abandonado?
Em primeiro lugar, os temas da Rodada Doha continuam muito presentes, desafiadores e relevantes. Essa questão que você coloca deve ser decidida pelos países membros da OMC —não sou eu que vou decidir isso. E hoje existe uma divisão entre os membros sobre esse tema. Alguns querem continuar as conversas com o formato de negociação que tínhamos no passado. Outros acreditam que aquela estrutura já foi testada ao máximo e o que precisamos encontrar novas formas de negociar até mesmo adaptando o conteúdo de alguns temas.

Essa decisão pode ser tomada em Buenos Aires? Qual é a posição do Brasil?
Não. Nem vale a pena gastar o tempo precioso por lá com isso, porque é muito polêmico. Prefiro que as autoridades brasileiras digam qual é a sua posição, mas o Brasil tem sido muito pragmático. Sem abandonar temas da Rodada de Doha fundamentais, como a agricultura, o país mostrou flexibilidade.

Se continuarmos com essa dinâmica pragmática e inclusiva de negociação, já é um ótimo resultado para Buenos Aires. Tenho tentado explicar aos membros que essa reunião não é o fim do caminho. O importante é que temos um caminho. Até a ministerial de Bali, ficávamos insistindo em um formato de negociação que não ia a lugar nenhum. Isso até oferecia algum conforto para alguns, porque não tem riscos, mas também não tem ganhos.

As delegações já identificaram os temas mais promissores para serem tratados na reunião?
Temos muitos temas que poderiam chegar a algum resultado, mas ainda está em análise. Na agricultura, por exemplo, estão ocorrendo conversas interessantes, mas é uma área muito difícil em função das divergências que permanecem entre os países.Temos um mandato que termina em Buenos Aires para negociar regras para os estoques públicos de alimentos formados para garantir a segurança alimentar. É um tema bastante polêmico.

Outra questão é o apoio à pesca: como eliminar ou diminuir os subsídios que leva a a sobrepesca no planeta? Há também temas novos, como o comércio eletrônico. Em Genebra, estamos discutindo assinatura eletrônica, proteção ao consumidor, incentivo à conectividade nos países pobres, entre outros assuntos. Quem sabe em Buenos Aires não conseguimos um programa de trabalho sobre comércio eletrônico e outros temas complexos, mas importantes, como facilitação de investimentos e regras para pequenas e médias empresas?

Brasil e União Europeia apresentaram uma proposta conjunta para reduzir os subsídios domésticos à agricultura. A ideia principal é limitar o apoio a um porcentual da produção. Qual é a sua opinião?
Toda proposta na área de apoio doméstico em agricultura é bem-vinda, porque o diálogo carece de uma visão inovadora. Mas é um momento de grande divergência entre os países sobre esse tema, porque os modelos de apoio doméstico são muito diferentes.

Não há a possibilidade hoje de existir uma proposta que seja imediatamente apresentada e consensuada, porque será confortável para alguns países, mas não para outros. Limitar o subsídio pelo valor da produção, por exemplo, não é uma novidade. A maioria dos países em desenvolvimento da OMC vivem com o chamado "de minimis", que é um valor da produção.

Isso significa que a chance da proposta Brasil-UE vingar em Buenos Aires é muito pequena?
Sozinha, é. A proposta acabou de ser apresentada e precisa ser complementada. Já temos a reação dos países: uns reclamando, outros recebendo bem, mas tem muita conversa até uma convergência. Não é à toa que ainda não conseguimos chegar a um acordo sobre esse assunto.

Hoje temos países em desenvolvimento exportadores, como o Brasil, que praticamente não subsidiam. Mas também temos países em desenvolvimento, como China e Índia, que subsidiam fortemente e estão preocupados com a segurança alimentar.

Há países desenvolvidos com agricultura pequena, mas de grande importância social. A União Europeia é um exemplo clássico. Nos países nórdicos, a proposta não foi bem recebida, porque o valor dos subsídios é pequeno, mas representa um elevado porcentual da produção. Nos Estados Unidos, a agricultura é competitiva, mas, até por seu tamanho, os subsídios são altos.

Mas a proposta foi apresentada por um exportador (Brasil) e um importador (UE). Surpreendeu?
Não, porque eles já estavam trabalhando nisso há bastante tempo. O Brasil, obviamente, tem um grande interesse. A Europa está reformando suas políticas internas e gostaria que os outros países também se "desarmassem". Quando refinarmos as conversas e chegarmos a pontos específico, Brasil e UE terão interesses diferentes, mas não estamos lá ainda. Acho que nesse momento o que eles estão tentando é dinamizar as negociações agrícolas.

Vários países hoje estão se tornando mais protecionistas. O cenário internacional preocupa?
A economia mundial ainda não está plenamente recuperada desde a crise de 2008. Por isso, a expansão do comércio está muito abaixo do potencial histórico. É possível que tenhamos o sexto ano consecutivo de taxa de crescimento do comércio abaixo de 3%, o que não tem precedentes na história do pós-guerra.

Há um sentimento de antiglobalização, de ver o importado e o estrangeiro como uma ameaça ao sistema produtivo e aos empregos domésticos. Isso tem alguma legitimidade, mas é uma visão muito mal informada. Também existem vários temas de segurança nacional sendo discutidos.

É um clima difícil, mas não tem impedido a OMC de seguir avançando. Para uma organização em que as pessoas não levavam a menor fé, conseguimos um grande engajamento dos governos e do setor privado. Estou recebendo um número muito maior de missões empresariais em Genebra, porque a OMC entrega resultados importantes para eles.

Os Estados Unidos ainda não indicaram embaixador na OMC depois da posse de Donald Trump, que chegou a dizer que deixaria a entidade. Como está o engajamento do governo americano?
Temos um diálogo fluído com o USTR [órgão responsável pela política comercial americana]. A indicação dos embaixadores em Genebra são lentas mesmo. O embaixador anterior levou um ano e meio para ser confirmado. Os EUA já disseram publicamente que têm dificuldades com certas regras estabelecidas pela OMC. Reconhecem que eles próprios negociaram tudo isso, mas gostariam de ver aperfeiçoamentos. Todos querem melhorar o sistema, inclusive eu, mas cada um tem uma visão diferente do que é isso. O que precisamos acertar é quais são essas melhorias. Essa conversa ainda não ocorreu. Os EUA ainda passam por debate interno sobre os rumos de sua política comercial.

Mercosul e União Europeia estão otimistas com a possibilidade de finamente assinarem o acordo de livre comércio durante a reunião de Buenos Aires. Isso influencia de alguma forma no sistema multilateral?
Não influencia diretamente, mas qualquer movimento de blocos importantes de maior integração é uma boa notícia para o sistema multilateral de comércio e para a economia mundial.

O senhor se reuniu com o presidente Michel Temer. A crise política que o Brasil atravessa afeta o protagonismo do Brasil na OMC?
Não notei nenhuma mudança no patamar de visibilidade e de ativismo do Brasil. Boa parte da nossa conversa foi sobre propostas do Brasil na OMC. O país é visto como um dos países que lideram as negociações porque tem capacidade de apresentar novas ideias. E isso é uma tradição brasileira. A conversa com o presidente ficou focada nos temas comerciais. Falamos sobre o que esperar da conferência ministerial de Buenos Aires, sobre os desafios da economia e do comércio global, sobre o excesso global de produção de aço, sobre o acordo Mercosul-União Europeia.

O senhor inicia o seu segundo mandato à frente da OMC em setembro. O que gostaria de alcançar nesses quatro anos?
Quando assumi a OMC, meu principal desafio era recuperar a credibilidade da organização como um foro negociador, que entrega resultados. Boa parte das conversas sobre temas comerciais estava escapando do sistema multilateral e se concentrando no bilateral e no regional.

As conversas bilaterais são importantíssimas, até porque alimentam as negociações no sistema multilateral, mas é preocupante quando ocorrem apenas ali. Felizmente temos outra situação hoje. Não aparece muito nas manchetes de jornal, mas o dinamismo é muito grande.

Se eu puder consolidar a autoestima dos negociadores e das delegações no meu segundo mandato, convencê-los de que as coisas são difíceis, mas não impossíveis, de que basta encontrar a flexibilidade e a criatividade necessárias, será um grande ganho. O acordo de facilitação de comércio é um exemplo notório disso —todos saíram ganhando.


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