Folha de S. Paulo


Renúncia do presidente-executivo da Uber mostra força de investidores

No mundo das start-ups do Vale do Silício, a tradição sempre foi que os fundadores das empresas comandam e os investidores servem como torcida organizada —ou como figuras paternas permissivas— para os empreendedores que decidem bancar.

Mas, quando investidores pediram a renúncia de Travis Kalanick como presidente-executivo da Uber, o universo das start-ups recebeu um lembrete de que investidores também podem flexionar seus músculos e fundadores não são intocáveis.

[A saída ocorreu após uma série de escândalos na empresa, incluindo acusações de assédio sexual e sexismo e o uso de um software para enganar autoridades de algumas cidades.]

"Os exemplos que as pessoas citam sobre fundadores que exercem poder completo são exceções", disse Lenny Mendonca, sócio sênior emérito da consultoria McKinsey. "Se os investidores estiverem preocupados com os retornos, eles se envolvem. Tomam o controle. Foi isso que aconteceu na Uber."

O equilíbrio de poder nas empresas de tecnologia iniciantes é uma questão delicada há muito tempo.

O ecossistema das start-ups do Vale do Silício depende de uma boa convivência entre fundadores e investidores -os empreendedores aparecem com as ideias e precisam do dinheiro dos financiadores, e os financistas precisam dos fundadores para ajudá-los a aumentar sua riqueza. Quem fica por cima nessa equação mudou diversas vezes ao longo do tempo.

Nos últimos anos, o pêndulo se inclinou decididamente na direção dos empreendedores. Como sempre no Vale do Silício, o motivo para isso é o dinheiro.

Em 2016, US$ 333,5 bilhões (R$ 1,09 trilhão) foram dirigidos ao setor de capital para empreendimentos, contra US$ 213,7 bilhões (R$ 698 bilhões) em 2006, segundo a Associação Nacional de Capital para Empreendimentos dos EUA e da Pitchbook.

Isso ofereceu aos empreendedores mais escolhas em termos de investidores.

Eles também ganharam o poder de impor cláusulas que os beneficiam financeiramente e cimentam seu controle sobre as start-ups.

Cerca de uma década atrás, por exemplo, Mark Zuckerberg, o fundador do Facebook, convenceu seu primeiro investidor importante, Jim Breyer, a criar uma estrutura de conselho que dava a ele o controle da empresa.

O sucesso do Facebook vem sendo usado para promover a ideia de que boas coisas acontecem quando os fundadores lideram e os investidores ficam quietos.

REALIDADE

Mas a realidade é que poucas companhias conquistaram sucesso comparável ao do Facebook. Alguns fundadores de start-ups, como David Byttow, do app Secret, que já saiu de operação, e Andrew Mason, da operadora de descontos on-line Groupon, conseguiram faturar milhões de dólares em dinheiro pessoal com suas empresas muito antes que alguém pudesse descrevê-las como sucessos.

"Porque as empresas ganharam a capacidade de obter capital de um grande número de fontes, com avaliações generosas, o processo de amadurecimento se retardou", afirmou Jeffrey Bussgang, sócio do grupo de capital para empreendimentos Flybridge Capital e professor na Escola de Administração de Empresas da Universidade Harvard.

Os fundadores também vêm adquirindo cada vez mais controle sobre as ações, com direito a voto em suas empresas. A porcentagem de rodadas de capitalização nas quais os fundadores receberam direitos de voto adicionais quase dobrou, entre 2014 e 2016 (de 20% para 39%), segundo dados do escritório de advocacia Fenwick & West.

Kalanick e um grupo de funcionários contratados nos primeiros dias da empresa detinham ações que conferem direito a dez votos por ação, de acordo com o regimento interno da Uber.

Embora cláusulas como essa tenham criado a impressão de que os fundadores estão firmemente no controle, a realidade é diferente. Em uma situação de amargura, pode ser difícil para o fundador exercer o controle que lhe caberia tecnicamente.

Na Uber, Kalanick talvez tivesse a possibilidade de derrotar no voto os investidores que pediram sua renúncia, entre os quais Benchmark, First Round Capital, Lowercase Capital, Menlo Ventures e Fidelity Investments.

Mas isso teria acarretado riscos: vencer essa batalha poderia ter resultado em um rompimento de relações com poderosos investidores do Vale do Silício de cuja ajuda ele talvez necessite no futuro.

Alienar a Fidelity colocaria em risco o relacionamento entre a Uber e a poderosa administradora de fundos mútuos, cujo apoio seria essencial em uma abertura de capital da empresa.

Ainda assim, a derrubada do presidente da Uber não é um caso único. No ano passado, investidores do setor de capital para empreendimentos derrubaram Parker Conrad, fundador e presidente-executivo da Zenefits, uma start-up de seguros.

Na época, Conrad detinha ações com direitos adicionais de voto, mas foi forçado a sair devido a questões sobre a cultura fortemente agressiva da empresa e à revelação de que ele havia criado uma ferramenta de software que ajudava os funcionários da companhia a burlar a lei.

Nos últimos trimestres, os grupos de capital para empreendimentos ganharam um pouco mais de vantagem nas negociações, porque a preocupação quanto a um possível exagero nas avaliações das empresas de capital fechado aumentou um pouco e o frenesi de interesse por start-ups se aliviou.

"Não há dúvida de que o poder dos fundadores chegou a um pico em 2015, e há dois anos estamos vendo uma normalização", disse Paul Martino, sócio na Bullpen Capital, uma empresa de capital para empreendimentos. "O ambiente não favorece indevidamente os investidores, mas estamos mais perto de um equilíbrio."

Martino disse que havia grande diferença entre apoiar os fundadores e entregar o controle absoluto a eles. "Se um conselho não pode contratar e demitir o presidente-executivo, para que existe o conselho?", ele disse. "Essa é sua única função."

Embora investidores tenham o poder de derrubar fundadores, eles estão cientes de que a dinâmica das start-ups ainda favorece os empreendedores. Se as empresas de capital para empreendimentos desejam cortejar os empreendedores mais procurados, precisam desenvolver a reputação de que é fácil conviver com elas.

Nas horas imediatamente posteriores à derrubada de Kalanick, investidores na Uber recorreram ao Twitter para elogiá-lo. Bill Gurley, da Benchmark, membro do conselho da Uber que no passado havia sido um aliado muito próximo de Kalanick, escreveu que "haverá muitas páginas dedicadas a Kalanick nos livros de história". Um dia depois que Kalanick foi forçado a renunciar, Gurley deixou seu posto no conselho, segundo uma pessoa informada sobre a situação.

Shawn Carolan, investidor na Menlo Ventures, declarou em diversos tweets que Kalanick havia feito "muito de bom" e que os investidores estavam "gratos por tudo que ele realizou".

Quando um profissional de capital para empreendimentos se torna membro do conselho de uma empresa muito jovem, é possível que pense primeiro em seus fundos e fundadores, mas mais tarde passa a ter responsabilidade fiduciária para com todos os acionistas, disse Bussgang.

"Bill Gurley não estava falando como sócio individual da Benchmark, mas como alguém que representava os interesses de um grupo amplo", disse Bussgang.

Conceder o controle dos votos a Kalanick causou dores de cabeça ao conselho e aos investidores da Uber. No entanto, Martino diz que o incidente dificilmente impedirá que empresas e investidores confiram esse poder a outros fundadores.

Mas os empreendedores podem ter aprendido algo. Bussgang disse que os executivos com quem trabalha vinham acompanhando de perto a saga da Uber.

"Eles reconhecem que demorar a amadurecer não ajuda", afirmou.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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