Folha de S. Paulo


Crítica

Livro desvenda amizade que moldou teorias sobre a mente

World Economic Forum
Daniel Kahneman, vencedor do Nobel de Economia em 2002
Daniel Kahneman, vencedor do Nobel de Economia em 2002

Fazemos escolhas a todo instante, das mais simples e rotineiras, como vestir rapidamente um casaco ao sentir o ar frio, até decisões que exigem mais reflexão e planejamento, por exemplo, optar entre uma infinidade de aplicações financeiras para formar a reserva da aposentadoria.

Mas nem sempre obtemos êxito nos trajetos trilhados. É como se os olhos estivessem fechados diante dos obstáculos em uma estrada ou enxergássemos algumas coisas apenas como miragens ou ilusões de óptica. Sem perceber, caímos em armadilhas da mente, erros sistemáticos que cometemos, muitas vezes, de forma inconsciente.

Ao longo de mais de duas décadas, os psicólogos israelenses Daniel Kahneman e Amos Tversky estudaram as limitações da mente humana, em meio aos percalços enfrentados por eles próprios, com idas e vindas dos Estados Unidos para Israel e convocações para servir o Exército do país natal.

As turbulências, contudo, não tiraram o foco da dupla. Tversky e Kahneman passavam horas conversando em ambientes fechados, mas o som mais recorrente eram as risadas. Eles se divertiam enquanto moldavam, a quatro mãos, o que se transformaria em um dos trabalhos mais contundentes contra a histórica ideia de que os seres humanos decidem de maneira racional. Podemos, sim, agir com a razão, mas nem sempre.

A história de amizade e parceria dos psicólogos é contada no livro "O projeto desfazer", escrito pelo jornalista americano Michael Lewis, autor de best-sellers como "Moneyball - O homem que mudou o jogo" e "A jogada do século" - esse último deu origem ao filme "A grande aposta", vencedor do Oscar de melhor roteiro adaptado em 2016.

Assim como Kahneman e Tversky "brincavam" de pesquisar o processo humano de tomada de decisões, Lewis oferece ao leitor um divertido quebra-cabeça, em que cada peça se encaixa ao longo das páginas. O texto começa contando como os especialistas avaliavam jogadores de beisebol, tema de "Moneyball". Mas o jornalista americano, curioso que só, se dispôs a descobrir como uma dupla de psicólogos no Oriente Médio tinha se debruçado sobre esse assunto na década de 1960, com implicações em áreas como economia, política e medicina.

SINTONIA

Com uma narrativa recheada de descrições e referências históricas, o livro busca reconstruir a trajetória dos pesquisadores e como seus caminhos se cruzaram, numa sintonia quase impossível tamanha a diferença de personalidade entre os dois, conforme depoimentos de colegas e amigos que conviveram com Tversky e Kahneman principalmente nos corredores das universidades onde cada um lecionava.

Enquanto Amos era autoconfiante, extrovertido, informal, a "alma de qualquer festa", Danny (como o autor chama Kahneman) não ia a festas, era introvertido e pessimista. Na infância, Kahneman sobreviveu ao Holocausto; Tversky é descrito no livro como um orgulhoso "sabra", gíria para um judeu nativo de Israel. São apenas alguns exemplos de como um se diferenciava do outro - em duas páginas, seguramente entre as mais (de muitas) saborosas da obra, Lewis traça as características de ambos.

Mas a dupla tinha muitos pontos em comum, entre eles, o desejo de fazer ciência e o interesse em "como as pessoas funcionavam quando se encontravam em um estado 'normal' não emotivo". Juntos, Danny e Amos se transformavam em uma só mente, com ideias que nasciam e fluíam numa simbiose e intimidade que apenas os dois compreendiam. O relato de Lewis descreve, de forma apaixonante, a relação entre os pesquisadores. Em conjunto, decidiam inclusive quem levaria o crédito de autor principal dos artigos, definição tomada ao jogar cara ou coroa.

Reprodução/Wikipedia
Amos Tversky, que recebeu bolsa para
Amos Tversky, que recebeu bolsa para "gênios" em 1984

COMPORTAMENTO ECONÔMICO

Alternando com capítulos que mostram o caminho percorrido por cada um na vida profissional e pessoal, a obra destrincha os estudos desenvolvidos pela dupla, numa sequência cronológica, mas sem tornar a leitura cansativa. Uma das grandes contribuições do trabalho de Kahneman e Tversky foi ampliar a discussão sobre como as pessoas se comportam ao tomar decisões econômicas.

O Projeto Desfazer
Michael Lewis
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Por que entramos no cheque especial (com juros altíssimos) enquanto temos dinheiro aplicado? Por que não resistimos a uma promoção? Perguntas como essas e muitas outras são esmiuçadas no livro "Rápido e devagar: duas formas de pensar", publicado em 2011 por Kahneman, depois de muito sofrimento com a morte de Tversky 15 anos antes, vítima de câncer.

"Em sua última conversa, Danny contou a Amos que tinha medo da ideia de escrever alguma coisa sob o nome de Amos que o amigo pudesse desaprovar. 'Não tenho confiança no que vou fazer', disse Danny. Amos respondeu: 'Bastará você ter confiança no modelo de mim que está na sua mente'". E Kahneman confiou.

O Projeto Desfazer
QUANTO: R$ 49,90 (368 PÁGS.)
AUTOR: MICHAEL LEWIS
EDITORA: INTRÍNSECA

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RAIO-X

Daniel Kahneman
Nascimento
1934
Formação
Psicologia e matemática pela Universidade He-braica de Jerusalém; dou-torado em psicologia pela Universidade da Califórnia;
Ganhou o Nobel de Economia em 2002
Principal livro
"Rápido e Devagar –Duas Formas de Pensar"

Amos Tversky
Nascimento
1937 (morto em 1996)
Formação
Psicologia e matemática pela Universidade Hebrai-ca de Jerusalém; doutor em psicologia pela Univer-sidade de Michigan
Principal livro
"Judgment Under Uncertainty" (em coautoria com Kahneman; sem tradução para o português)


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