Folha de S. Paulo


Companhias investem em internet das coisas para otimizar processos

O corredor nordeste da Amtrak é a ferrovia mais movimentada da América do Norte. Sua confiabilidade está na média das ferrovias estatais —cerca de 20% de seus trens registraram atrasos significativos no ano passado—, mas, como conecta os centros de poder político e financeiro dos Estados Unidos, atrai críticas ruidosas pela lentidão de seus serviços.

Longe dos olhares dos passageiros insatisfeitos, os engenheiros da Amtrak têm usado tecnologias avançadas para evitar atrasos. A Siemens, companhia alemã que construiu algumas das locomotivas usadas na rota entre Washington e Nova York, está recorrendo à chamada "internet industrial das coisas" para prevenir problemas.

Ao analisar dados de 900 sensores em cada uma de suas locomotivas, a Siemens pode compreender por que problemas ocorrem e preveni-los. Os atrasos se reduziram em 33% em 2016 ante 2015, e o desempenho "é quase uma ordem de magnitude melhor do que no passado", diz Rick Shults, gerente do projeto.

O trabalho para a Amtrak está na vanguarda de uma revolução radical para setores da indústria, energia e transportes. A queda de custo dos sensores, comunicações, armazenagem de dados e sistemas de análise tornou possível registrar e processar grandes volumes de informações sobre sistemas físicos, de trens e refinarias de petróleo a turbinas eólicas. Análises da temperatura, pressão, vibração, movimento e fluxos de correntes elétricas podem prevenir falhas, simplificar a manutenção, melhorar o desempenho —e até mesmo mudar como produtos são projetados e feitos.

Em 2020, empresas gastarão cerca de R$ 1 trilhão ao ano com internet das coisas. Metade desses gastos virão da indústria, dos transportes e das companhias de infraestrutura, de acordo com o Boston Consulting Group.

"É uma grande oportunidade para toda a indústria", diz Bill Ruh, vice-presidente digital da General Electric. "A análise de dados e a conectividade de máquinas permitirão chegar em um novo patamar de produtividade". Assim como a robótica e a impressão 3D, a internet das coisas deve transformar a indústria nas próximas duas décadas.

FOCO NO SOFTWARE

Qualquer indústria que queira continuar existindo em 20 anos está ampliando sua capacitação digital, inclusive com aquisições. A GE adquiriu quatro empresas para reforçar seus negócios digitais e aHoneywell adquiriu a israelense Nextnine para reforçar suas operações de segurança na internet.

A Siemens investiu US$ 15 bilhões na aquisição de companhias norte-americanas de software desde 2007, e tem 21 mil engenheiros na área. A Bosch, da Alemanha, tem mais de 20 mil engenheiros de software —4 mil se dedicam à internet das coisas. A GE tem 14 mil engenheiros, e planeja contratar mais 6 mil técnicos na área digital.

Os consultores de branding encontraram um veio de negócios rico. A GE tem a Predix, a Siemens tem a MindSphere, a francesa Schneider tem a EcoStruxure, a ABB, de Zurique, tem a ABB Ability, e assim por diante.

Jeff Immelt, que anunciou este que deixará em breve a presidência executiva da GE, quis transformar o grupo em um negócio "industrial digital". Quando começou a se despedir das unidades da empresa junto a John Flannery, seu sucessor, a primeira divisão visitada foi a sede das operações digitais da GE, em San Ramon, Califórnia.

Como os trens da Amtrak, porém, o luminoso futuro digital está chegando mais tarde do que muitos esperavam. O potencial é real, diz Venkat Atluri, analista da consultoria McKinsey, mas as companhias industriais demoraram a explorá-lo. Pode ser necessário que mudem completamente sua organização para se beneficiar de novas tecnologias. Outro obstáculo é que o número de produtos e serviços disponíveis é tão grande que ainda não emergiram padrões setoriais.

Com processos sigilosos, além de maquinaria cara e potencialmente perigosa, as companhias industriais são cautelosas quanto a confiar decisões críticas a terceiros. "Os clientes rejeitam riscos porque precisam rejeitá-los", disse Guido Jouret, vice-presidente digital da ABB. "Se você fizer alguma coisa de errado, pode ferir pessoas".

Os potenciais clientes também são muito cautelosos quanto ao controle de dados capazes de revelar detalhes de suas operações. A Gehring, uma empresa que fabrica máquinas que pulem e afiam superfícies metálicas com alta precisão, é uma das empresas que a Siemens aponta como exemplo no uso de sua plataforma digital MindSphere. Wolfram Lohse, vice-presidente de tecnologia da Gehring, diz que as montadoras de automóveis que são clientes de sua empresa exercem muita cautela sobre a maneira pela qual ela pode empregar seus dados de produção.

A Gehring se beneficiou da nova tecnologia, diz Lohse, e espera novos avanços, entre os quais aumentar a produtividade de suas máquinas. Mas ele acrescenta: "Preciso admitir que isso é apenas potencial, por enquanto. Não está em uso comercial ainda".

Nesse mercado desafiante e superlotado, novos concorrentes emergem o tempo todo. Avançar mais no campo do software leva as companhias industriais a enfrentar empresas especializadas em tecnologia da informação, e o panorama de cooperação e competição é altamente mutável, entre diferentes grupos que uma década atrás teriam ignorado uns aos outros.

Empresas de tecnologia estabelecidas como IBM, SAP, Microsoft, Intel e Cisco também oferecem tecnologia preditiva de manutenção, e há numerosas startups que buscam novas oportunidades nos mercados industriais. Até o ano passado, havia mais de 360 companhias oferecendo plataformas de internet das coisas, de acordo com a IOT Analytics, uma empresa de pesquisa de Hamburgo.

Ganhar dinheiro nesse ambiente não é fácil. A GE diz que seus negócios digitais não começarão a fazer contribuição notável para sua receita até 2019-20.

O contrato de "transformação digital" que a Engie, da França, uma das maiores geradoras de energia e fornecedoras de gás da Europa, colocou em licitação no ano passado, serve como exemplo de como a concorrência é dura. A Engie conversou com muitas empresas sobre o contrato para a criação de uma plataforma de internet das coisas para os seus negócios em todo o mundo, com o objetivo de usar todos os dados de que a companhia dispõe a fim de melhorar a eficiência e o atendimento aos clientes.

A GE, que já tinha a Engie como uma de suas maiores clientes, poderia parecer a escolha óbvia para fornecer a plataforma. Em lugar disso, a Engie anunciou em junho do ano passado que havia selecionado uma empresa do Vale do Silício chamada C3 IOT, fundada em 2009 como C3 Energy pelo bilionário Tom Siebel, um pioneiro do software de administração de relacionamento com clientes.

Um mês mais tarde, a Engie assinou um acordo de parceria com a GE em uma série de atividades como a melhora de desempenho de usinas de energia, mas a impressão foi a de que isso não passava de um prêmio de consolação.

Siebel descreve a GE como "um conglomerado do século 19, com uma visão do século 19 ou século 20 sobre como desenvolver software", investindo bilhões de dólares e contratando milhares de pessoas para desenvolver seus produtos. "Não é assim que funciona", ele disse. "Pode-se criar excelentes produtos de software com 10, 20 ou 30 pessoas". A C3 IOT tinha 130 funcionários, em maio.

Em novembro, a GE fechou acordo com a empresa de eletricidade norte-americana Exelon, para melhorar o desempenho de suas usinas e desenvolver novos aplicativos para o setor de eletricidade. Ela tem outros clientes para sua plataforma digital de administração da confiabilidade e desempenho de usinas de energia, como a Sonelgaz, da Argélia, e a Invenergy, dos Estados Unidos, mas o contrato da Engie é um sinal de como o domínio no setor de hardware não necessariamente se traduz em vantagem no software.

Os grupos industriais afirmam que têm conhecimentos especializados sobre seus setores e clientes que lhes oferecem uma vantagem competitiva crucial.

"Sabemos como produzir. Sabemos como automatizar uma edificação. Sabemos como operar trens, ou uma turbina", diz Busch. "Isso significa que somos capazes não só de dar escala ao software mas que temos conhecimento de campo especializado. Essa é a nossa mais poderosa alavanca, e nenhuma outra empresa conta com ela".

Os potenciais riscos caso algo saia errado também favorecem manter um relacionamento com fornecedores estabelecidos, diz Jouret, da ABB. "Os clientes pensam: calma lá, será que posso deixar essa cara operar minha fábrica?"

A QUEM PERTENCEM OS DADOS?

Mas já começam a surgir histórias que sugerem que os grandes grupos industriais seriam imprudentes em confiar nas vantagens de seu atual predomínio. A Precognize, uma startup israelense de manutenção preditiva, conquistou um contrato com o grupo químico alemão BASF, a maior companhia química de capital aberto do planeta, para trabalhar em suas fábricas. Chen Linchevski, presidente-executivo da Precognize, admite alegremente que ele e sua equipe não são especialistas em produtos químicos.

"Nós admitimos não saber coisa alguma sobre o negócio do cliente; o importante é que ele sabe. Ele sabe sobre suas fábricas, nós sabemos de software", diz Linchevski.

Oferecer serviços específicos e permitir que os clientes mantenham mais controle sobre seus dados muitas vezes é mais atraente que aparecer com uma "caixa preta" dizendo "não se preocupe, pode confiar em nós", acrescenta Linchevski.

Essa decisão gera uma pergunta fundamental para todas as empresas: o que exatamente elas fazem? Se entregam o controle de seus dados a terceiros, e transferem a um provedor de serviços decisões sobre como realizar suas operações, que valor estão adicionando?

Francisco Starace, presidente-executivo da Enel, companhia italiana de eletricidade, diz que sua empresa compra produtos de fornecedores de software, mas que integra sua tecnologia e desenvolve serviços sozinha.

Executivos e analistas concordam em que a atual proliferação de plataformas concorrentes não pode durar. Zia Yusuf, sócio do Boston Consulting Group, diz que em cada segmento do mercado devem surgir três ou quatro fornecedores dominantes. É possível que empresas consigam controlar segmentos nos quais são tradicionalmente fortes: GE e Siemens na geração de energia, Siemens na indústria, Honeywell no refino, e assim por diante.

Ruh diz que a GE será "uma das apenas duas ou três empresas" capazes de realizar a otimização de equipamento e operações que ele vê como foco do grupo.

Mas em um mercado assim novo e complexo, o quadro está mudando constantemente. "Dentro de cinco anos, a abordagem terá evoluído mais de uma vez", diz Starace.

Joe Kaeser, presidente-executivo da Siemens, diz que faz sentido se preocupar com a concorrência que a empresa enfrenta. "Paranoia não é bom. Mas ter medo faz bem", ele diz. "Às vezes nos assustamos um pouco, e isso ajuda muito a nos concentrarmos".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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