Folha de S. Paulo


Gigantes da tecnologia roubam espaço de agências de publicidade em Cannes

Eric Gaillard/Reuters
Logos of the social network Facebook are seen on a beach during the Cannes Lions in Cannes, France, June 21, 2017. REUTERS/Eric Gaillard ORG XMIT: NIC25
Logos de rede social em praia de Cannes durante festival mundial de publicidade

No festival de publicidade de Cannes, neste ano, até o carrossel das crianças sofreu com a concorrência das grandes empresas de tecnologia.

A área diante da Plage de la Croisette, a praia dourada que conquistou fama com a ajuda de décadas de glamour cinematográfico, costumava ser dominada pelos nomes e logotipos de poderosas redes de agências de publicidade como os grupos WPP e Publicis.

Mas, em um sinal das mudanças que vêm acontecendo no setor, agora são nomes do Vale do Silício que dominam o panorama no festival Cannes Lions. Facebook, YouTube, Twitter e Pinterest criaram clubes de praia hipsters nos quais executivos, jornalistas e profissionais de marketing podiam conversar sobre negócios ou simplesmente degustar um bom café, assistindo aos jogos de vôlei de praia.

O prêmio para o posicionamento mais audacioso cabe à plataforma de mensagens Snapchat —que realizou uma bem sucedida oferta pública inicial de US$ 20 bilhões em ações, em março. A companhia montou uma gigantesca roda-gigante amarela ao lado do Palais des Festivals, para oferecer passeios grátis aos turistas e participantes.

"É uma catástrofe", diz Corinne D'Harcour, que opera o Grand Carrousel de Cannes —a atração infantil logo ao lado— há 13 anos. "Eles também estão distribuindo pirulitos", ela acrescenta, fazendo um sinal de negativo com o polegar e apontando para duas crianças que passavam carregando pirulitos com o logotipo do Snapchat.

O simbolismo do festival de Cannes expõe uma tendência inexorável que está reordenando o setor publicitário. Ainda que o setor como um todo tenha se beneficiado do crescimento na publicidade digital, as agências estão começando a sentir a pressão, agora que as grandes empresas de tecnologia estão se tornando protagonistas cada vez mais poderosas do mercado.

"Em 2010, você não veria a marca do Google e a do Facebook aqui diante da praia", disse Duncan Painter, presidente-executivo da Ascential, que organiza o festival. "O espaço era todo ocupado pelas grandes agências".

Ou, como disse um executivo de uma companhia de TV britânica, "Cannes se tornou mais um evento de tecnologia. O clima agora é do tipo 'vem cá tomar um smoothie, enquanto nós arruinamos seu negócio'".

AMEAÇAS

Mas mesmo que a sensação seja de que o balanço de poder está mudando no setor, as empresas de tecnologia também enfrentam ameaças aos seus modelos publicitários. Grandes clientes estão criticando abertamente a maneira pelas quais elas calculam a efetividade dos anúncios veiculados em suas plataformas. E elas estão sob ataque, além disso, pela difusão de notícias falsas e de retórica do ódio.

Se a transição para a publicidade digital deve continuar, os grupos do Vale do Silício terão de encontrar respostas para essas questões. Por enquanto, porém, são as empresas tradicionais de mídia que estão começando a sentir o impacto mais pesado do desordenamento digital.

Pela primeira vez desde que a crise financeira lançou o setor publicitário a uma recessão, em 2009, as quatro grandes companhias de publicidade —WPP, Publicis, Omnicom e Interpublic— estão mostrando estagnação.

A Publicis, onde Maurice Levy acaba de ser substituído por Arthur Sadoun depois de 30 anos como presidente-executivo, registra a pior queda, com 1,2% de declínio em suas receitas orgânicas mundiais no primeiro trimestre de 2017. A situação é mais aguda na América do Norte, onde a Publicis sofreu queda de 5% em seu faturamento enquanto o WPP passava por 0,2% de queda no mesmo período.

De acordo com Brian Wieser, analista de mídia da Pivotal Research, de Nova York, o crescimento orgânico das quatro grandes e mais a Havas —que deve se fundir com a Vivendi, de Vincent Bolloré, em uma transação de dois bilhões de libras (cerca de R$ 8,5 bilhões)— caiu em 0,3% na América do Norte, a primeira vez que isso acontece sem que a região esteja em recessão.

"Isso se seguiu a uma desaceleração acentuada para as agências, nos Estados Unidos e no mercado internacional, que começou no primeiro semestre do ano passado", acrescenta Wieser. "E essa narrativa por enquanto não vai mudar".

No começo deste mês, o grupo de pesquisa Magna previu para 2017 uma alta de 3,7% nas vendas mundiais líquidas de publicidade, uma desaceleração acentuada ante os 6% de alta registrados pelo setor em 2016.

"O ambiente está complicado", diz Sir Martin Sorrell, presidente-executivo do WPP, o maior grupo publicitário do planeta. Além do "desordenamento tecnológico", os grupos publicitários tiveram de enfrentar cortes ferozes de custos pelos seus clientes e crescente pressão de investidores ativistas por retornos melhores em curto prazo. "É a tempestade perfeita", ele diz.

A consultoria de mídia Enders afirmou em um relatório recente que "o setor publicitário continuará a passar por mudanças profundas. O investimento publicitário geral continua a crescer mais que o consumo. Mas... os sinais vitais do mercado são alarmantes".

CURTO PRAZO

De acordo com a Enders, o foco cada vez mais intenso em compras de tempo publicitário em curto prazo, propelidas pela velocidade e eficiência da publicidade programática online, representa séria ameaça para o papel que as agências costumavam desempenhar no desenvolvimento de campanhas memoráveis para grandes marcas como Coca-Cola, Apple e McDonald's.

A Enders calculou que o equilíbrio entre construção de marcas em longo prazo e ativação de curto prazo era da ordem de 50% a 50% no momento, mas que em breve as ativações de curto prazo deteriam 60% do bolo, o que conferiria ainda mais poder sobre a publicidade às plataformas tecnológicas. Pesquisas mostram que os vice-presidentes de marketing de grandes empresas permanecem menos tempo em seus postos do que outros executivos de primeiro escalão, o que reforça o imediatismo.

Nos últimos cinco anos, os grandes conglomerados de publicidade se beneficiaram do rápido crescimento promovido pelas companhias de tecnologia.

Mas depois de uma investigação conduzida no ano passado pela Associação de Anunciantes Nacionais dos Estados Unidos e de um inquérito do Departamento da Justiça, as grandes marcas começaram a fazer perguntas insistentes sobre a forma pela qual as agências gastam o dinheiro deles online.

As agências foram acusadas de gastar o dinheiro dos clientes e em seguida aceitar bonificações em montantes não revelados das empresas de mídia, sem repassá-las aos clientes.

A isso é preciso acrescentar a falta de transparência das compras programáticas —leilões em alta velocidade para aquisição de espaço publicitário online—, que forçou muitas empresas a abandonar as agências como intermediárias e negociar diretamente com as plataformas de tecnologia.

O resultado foi uma alta no investimento publicitário, que levou duas das empresas de tecnologia em pauta, Google e Facebook, a responder por um quinto do investimento publicitário mundial, de acordo com o banco Credit Suisse.

E ao mesmo tempo, estão surgindo indicações de que a publicidade em TV —por muito tempo o principal propulsor dos gastos de marketing— está passando por forte queda este ano. No Reino Unido, os grupos de televisão ITV e Sky reportaram queda em sua receita publicitária nos primeiros meses de 2017.

Nos Estados Unidos, o investimento em publicidade digital superou o investimento em publicidade televisiva pela primeira vez no ano passado, com US$ 70 bilhões de gastos com publicidade online ante US$ 67 bilhões para a televisão, de acordo com a Magna. No total mundial, a TV está ligeiramente à frente.

OLIMPÍADA

Parte da desaceleração em 2017 pode ser atribuída ao ano recorde que a publicidade registrou em 2016, com o estímulo dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro e da campanha presidencial de Donald Trump.

Mas muita gente no setor teme que o desempenho do ano passado tenha servido para encobrir uma mudança em prazo mais longo, e uma reavaliação pelas marcas e empresas sobre seus métodos de venda e divulgação de produtos.

Diante da incerteza econômica generalizada e de preocupações quanto à transparência, os dois grupos empresariais que mais gastam com publicidade —os conglomerados de bens de consumo Unilever e Procter & Gamble (P&G)— estão revisando seus gastos e seu relacionamento com agências.

A Unilever, que controla marcas como os sorvetes Ben & Jerry e os sabonetes Dove, recentemente anunciou que reduziria à metade o quadro de 3.000 agências que a atendem em todo o mundo, e que veicularia um terço de anúncios a menos.

Ao mesmo tempo, a P&G, dona de marcas como Gillette e Pampers, anunciou que pretende cortar seus custos de marketing em US$ 2 bilhões nos próximos cinco anos, depois de cortes de US$ 600 milhões em anos recentes.

Com as grandes agências perdendo terreno para os gigantes da tecnologia, Marc Pritchard, vice-presidente mundial de marcas da P&G, responsável por alocar um orçamento publicitário anual de mais de US$ 8 bilhões, diz que as agências precisam fazer mais para ajudar seus clientes.

"Gastamos US$ 600 bilhões ao ano em publicidade mas continuamos a registrar crescimento anêmico, e com isso o que o setor publicitário precisa é descobrir o que promove o crescimento."

Mas Pritchard também está na vanguarda de outra tendência importante: a crescente pressão exercida sobre as plataformas de tecnologia quanto ao seu sistema de mensuração de anúncios e quanto ao tipo de conteúdo que elas ocasionalmente permitem.

Em um importante discurso a executivos publicitários, em janeiro na Flórida, ele descreveu a cadeia de suprimento da mídia como "obscura, na melhor das hipóteses, e fraudulenta, na pior".

Passados seis meses, Pritchard se diz encorajado pela resposta das empresas de tecnologia e das agências de publicidade, mas acrescenta que é preciso fazer mais.

"Acho que as coisas mudaram. Muita atenção vinha sendo dedicada à mídia digital e à tecnologia, que oferecem muito de empolgante, mas olhando por baixo do capô percebemos que nem tudo era tão bom quanto nos diziam".

CONFIANÇA ABALADA

Desde o discurso de Pritchard, as empresas de tecnologia passaram a sofrer cada vez mais pressão, depois de uma série de controvérsias públicas que abalaram a confiança dos anunciantes.

Em março, diversas marcas e anunciantes conhecidos, entre os quais Honda, Lloyds Bank e Tesco, retiraram seus anúncios do YouTube depois de uma investigação do jornal londrino "Times" que mostrou que suas marcas estavam patrocinando sites extremistas e outras formas de conteúdo online inapropriado.

As plataformas de mídia social também estão sendo observadas, quanto à maneira pela qual fiscalizam notícias falsas e retórica hostil, especialmente depois dos recentes ataques terroristas graves em diversas cidades europeias importantes.

Ainda que o Google, que controla o YouTube, tenha tomado medidas para conter os danos, entre as quais a imposição de controles que dificultam a monetização de conteúdo postado em sites terroristas e de retórica do ódio, muitos anunciantes optaram por não voltar.

Matt Brittin, que comanda as operações do Google na Europa, admitiu os problemas. "Há anunciantes que ainda estão reavaliando a plataforma", ele diz. "A maioria de nossos anunciantes ficou conosco, e alguns optaram por fazer uma pausa e reavaliar".

"Eles esperam padrões elevados e, em diversos casos, não conseguimos manter esses padrões elevados, o que explica por que estamos trabalhando para melhorar", ele disse.

O Facebook, enquanto isso, admitiu uma série de erros em sua mensuração da efetividade de anúncios, depois de ter superestimado o número de visitas a vídeos em seu site.

Diante desse panorama, as companhias tradicionais de publicidade estão argumentando energicamente em favor do retorno dos anunciantes a elas, com o abandono do nebuloso mundo da compra programática de publicidade na mídia social.

"O ecossistema inteiro da publicidade está em posição bem precária, no momento", diz David Dinsmore, antigo editor do jornal britânico "Sun" e hoje vice-presidente de operações da News UK.

"Nos últimos cinco anos, nenhum vice-presidente de marketing foi demitido por elevar as verbas destinadas ao Google e Facebook. Será interessante acompanhar o que vai acontecer nos próximos dois ou três anos".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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