Folha de S. Paulo


Com moedas digitais, é possível contornar regras para enriquecer

Whitney Curtis/The New York Times
From left: Brian Pritchett, Patrick Lloyd, George Lum, Wil Thuston, Zach Hartwick, Peter Sussman, Kyle Jones, and Ben Loos at the offices of Fusion Marketing in St. Louis, June 19, 2017. Sussman, a software developer, began with around $800 worth of Bitcoin, which he earned selling art and blog posts online. He used his Bitcoin to first invest in a project called BitShares. Then he bought into the Ethereum virtual currency, Ether. As the value of Ether soared in recent months, Sussman got a ten times return on his original money (Whitney Curtis/The New York Times)
Peter Sussman (à frente) gerou interesse em moedas digitais em seus colegas de trabalho em St. Louis

Uma nova safra de empreendedores da tecnologia está abrindo mão dos caminhos usuais para arrecadar dinheiro. Eles não estão divulgando suas ideias junto aos fundos de capital para empreendimentos nem vendendo ações em ofertas públicas iniciais ou recorrendo a sites de crowdfunding como o Kickstarter.

Em vez disso, antes mesmo de terem um produto funcional, estão criando moedas digitais próprias e vendendo na internet —às vezesn arrecadando dezenas de milhões de dólares em questão de minutos.

A proposta é que, assim que os produtos estiverem em funcionamento, as moedas digitais —com nomes como BAT, Mysterium e Siacoin— poderão ser resgatadas em forma de serviços como armazenagem de dados ou acesso anônimo à internet, e seu valor pode crescer consideravelmente entre a compra e o resgate.

Conhecida como oferta inicial de moeda, essa nova modalidade de arrecadação de fundos on-line facilitou mais do que nunca a obtenção de grandes quantias pelos empreendedores, sem que eles precisem enfrentar dificuldades com autoridades regulatórias, contadores ou requerimentos de proteção aos investidores.

Desde o começo do ano, 65 projetos arrecadaram US$ 522 milhões com ofertas iniciais de moedas, de acordo com a Smith & Crown, uma empresa de pesquisa que acompanha esse novo setor.

É uma maneira instável, ampla e completamente desregulamentada de capitalizar uma start-up, que deixa confusos até mesmo alguns dos observadores mais experientes da tecnologia.

"É mais ou menos como quando você era criança e sabia que estava fazendo alguma coisa de errado sem que alguém o apanhasse", disse Chris Burniske, analista do setor na ARK Invest. "Não vai durar para sempre, mas é divertido enquanto isso. Esse mercado está muito movimentado no momento."

No mês passado, uma pequena equipe de engenheiros de computação na Lituânia arrecadou US$ 1,45 milhão em 45 minutos vendendo uma moeda chamada Mysterium, que no futuro oferecerá acesso a um serviço online de dados cifrados que ainda está sendo desenvolvido.

No dia seguinte, um grupo de programadores da região da baía de San Francisco arrecadou US$ 35 milhões em menos de 30 segundos de captação online de fundos. O grupo estava oferecendo Basic Attention Tokens (BAT), que no futuro trabalharão com um novo tipo de navegador para a Web, livre de publicidade.

Esta semana, uma equipe suíça arrecadou cerca de US$ 100 milhões para uma moeda que será usada para um programa de chat online chamado Status, que ainda não foi lançado.

Os proponentes das ofertas iniciais de moedas as descrevem como uma inovação financeira que confere poder aos desenvolvedores e oferece aos investidores iniciais a oportunidade de compartilhar dos lucros de um novo negócio, em caso de sucesso. Mas onde alguns veem um novo método de crowdfunding para projetos on-line, outros encontram um fenômeno aberto a abusos e, em muitos casos, violação flagrante das leis de valores mobiliários dos Estados Unidos.

"É uma exploração e um abuso contra o público investidor", disse Preston Byrne, advogado especialista em tecnologia e moedas virtuais, sobre as ofertas.

No ano passado, a primeira grande oferta inicial de moeda, pela Decentralized Autonomous Organization, não demorou a arrecadar mais de US$ 150 milhões. Mas o projeto fracassou depois que um hacker manipulou o código e roubou mais de US$ 50 milhões em moeda digital. De lá para cá, diversos outros projetos foram apontados como trapaças.

Mesmo entre os simpatizantes, há muitos que dizem que nos últimos meses há dinheiro demais entrando em projetos duvidosos.

Fred Wilson, fundador do fundo de capital para empreendimentos Union Square Ventures, disse que "em longo prazo sou muito otimista" sobre as novas moedas digitais. Mas acrescentou que "há muitas razões para cautela, por enquanto".

"Há uma mentalidade de corrida do ouro no setor, no momento, e muita gente está fazendo a coisa errada por motivos errados", afirmou.

A base da alta nas ofertas iniciais de moedas digitais é o boom mais amplo do dinheiro digital. Duas das moedas virtuais mais populares, bitcoin e Ether, viram uma disparada de valor nos últimos meses. E quando os empreendedores lançam novas moedas, pedem pagamento em bitcoin ou Ether, e não em dólares dos Estados Unidos.

Isso significa que bancos e instituições financeiras convencionais ficam essencialmente excluídos, o que permite que as ofertas iniciais de moedas aconteçam fora do alcance das autoridades regulatórias.

Entre as pessoas que estão investindo nessas moedas está Peter Sussman, 27, desenvolvedor de software em uma empresa chamada Fusion Marketing, em St. Louis.

Sussman começou com cerca de US$ 800 em bitcoin, que ele ganhou vendendo arte e posts para blogs online. Ele usou o bitcoin inicialmente para investir em um projeto chamado BitShares. Depois adquiriu a moeda virtual da Ethereum, chamada Ether. Com a disparada no valor do Ether no ano passado, Sussman obteve retorno de 1.000% sobre seu investimento inicial.

Em março, ele usou o Ether para comprar uma nova moeda virtual chamada GNT, criada como parte de um projeto chamado Golem, na Polônia. O valor da GNT subiu em mais de 3.000% nos últimos meses, e isso elevou a posição de Sussman em moedas virtuais a mais de US$ 200 mil.

Além da GNT, outras novas moedas como a Ark, Antshares e Spectrecoin mostraram alta de mais de 6.000% desde sua emissão inicial.

Sussman também teve alguns momentos ruins ao longo do caminho, como a ocasião em que ele enviou o equivalente a US$ 100 mil em Ether a um trapaceiro que criou um falso endereço digital para a oferta de uma nova moeda.

"Eu estava no trabalho. Fui ao banheiro e tentei vomitar, mas não consegui", disse Sussman. "Depois, terminei indo para casa e fiquei lá, furioso."

Quando contou aos colegas de trabalho sobre o acontecido, eles não o aconselharam a abandonar esse tipo de investimento. Em lugar disso, se empolgaram com a tendência. Agora, meia dúzia dos colegas de Sussman, entre os quais seu chefe, tem uma sala de chat para discutir potenciais investimentos em moedas.

Os projetos que vendem moedas assumem diversas formas. Alguns são startups pura e simplesmente, e as moedas lançadas servem como ações, com promessa de pagamento de dividendos se a empresa se sair bem. Outros são derivativos do bitcoin ou da Ethereum, que os investidores colocam à venda antecipadamente antes do lançamento público mais amplo.
Mas a maioria dos projetos mais procurados não são startups tradicionais. Em lugar disso, os programadores estão criando serviços online parecidos com a Wikipédia, que devem operar com fonte aberta e sem proprietários.

As moedas se tornarão o método internacional de pagamento por esses serviços, quando eles forem criados —pagando por poder de processamento, no caso do Golem, ou armazenagem de arquivos, em um projeto chamado Storj. A venda das moedas será usada para bancar a remuneração dos programadores envolvidos.

Até mesmo alguns nomes conhecidos do Vale do Silício estão usando as moedas para arrecadar fundos. Brendan Eich, cofundador do projeto Mozilla de navegador para a Web, está desenvolvendo um novo navegador chamado Brave.

Foi Eich que arrecadou US$ 35 milhões em apenas 30 segundos, vendendo BATs, no final de maio. As pessoas que usarão o navegador Brave poderão usar os BATs para ver páginas sem publicidade, e empresas poderão pagar usuários para que estes vejam anúncios. (O "New York Times" e outras empresas de conteúdo consideram a técnica de bloqueio de publicidade do Brave ilegal.)

A esperança, no caso de uma moeda como o BAT, é que, à medida que mais pessoas passem a usar o navegador e mais anunciantes desejem a moeda, a procura por ela aumentará e os usuários se beneficiarão da alta de preço. Esse efeito de rede pode encorajar os usuários a atrair amigos para o serviço.

Eich disse que sua expectativa era de que a posse da nova moeda por grande número de pessoas "levará milhões de usuários a entrar em nosso ecossistema".

Esse é o sonho. Por enquanto, diversos projetos estão arrecadando milhões sem terem qualquer produto para testar. E por conta da falta de proteção aos investidores, os projetos ficarão vulneráveis aos caprichos dos empreendedores, que podem simplesmente largar tudo, levando com eles o dinheiro arrecadado via moedas digitais.

Os problemas mais imediatos que podem surgir envolveriam uma decisão das autoridades regulatórias de considerar as moedas como títulos financeiros não registrados, o que viola as leis financeiras norte-americanas. Um representante da Securities and Exchange Commission (SEC), agência federal que regulamenta os mercados de valores mobiliários dos Estados Unidos, sugeriu em conferência no mês passado que a organização estava ciente dos possíveis problemas e que estava observando o mercado.

Para pelo menos alguns investidores, como Sussman, a possibilidade de grandes perdas é o avesso dos grandes ganhos, e parte da atração.

"É muito oeste selvagem", ele disse. "É fácil chegar a uma situação em que você manda dinheiro a um trapaceiro, e não há como recuperá-lo. Essa é a beleza da coisa, também, por outro lado".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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