Folha de S. Paulo


Leia 'Uma carta desastrada', coluna de Roberto Campos em 1995

O economista e diplomata Roberto Campos (1917-2001), que faria 100 anos nesta segunda-feira, foi colunista da Folha, onde manteve a seção "Lanterna na Popa" entre 1994 e 2000.

Leia abaixo texto de Campos publicado no jornal em 13 de agosto de 1995.

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Uma carta desastrada, ou o dinossauro de muletas...

A pressão desesperada da Petrossauro é uma despudorada confissão de incompetência

ROBERTO CAMPOS

De algum presidente ocasional ou subprovinciano, ainda se poderia compreender.

Mas do estadista Fernando Henrique Cardoso não se poderia esperar uma carta tão pouco feliz como a que ele mandou ao Senado Federal, comprometendo-se a enviar ao Congresso uma lei regulamentadora da flexibilização do monopólio de petróleo com as seguintes características: (1) a Petrossauro não será privatizada; (2) não será exposta à competição de outras concessionárias nas áreas em que já opera; (3) terá, em igualdade de condições, preferência nas futuras licitações para concessões de pesquisa e lavra.

Fernando Henrique acrescentou, assim, à escala zoológica conhecida, um novo animal: um dinossauro de muletas...

Essas amarrações pareceriam politicamente desnecessárias, pois o governo dispõe de sólida maioria no Senado; e são economicamente insensatas, servindo de obstáculo à eficiência do setor e à aceleração de investimentos petrolíferos.

Os únicos beneficiários serão os corporativistas da empresa e o senador relator, que trovejou fugidiamente na mídia e preservou a possibilidade de nomeações clientelísticas.

A privatização da Petrossauro, admitidamente, não seria fácil, pois a empresa é grande demais e viciada demais. Ao longo dos anos, tornou-se uma mistura de três coisas: uma empresa mínero-industrial, um generoso instituto de previdência para seus funcionários e um paraíso fiscal, em detrimento do Tesouro Nacional e dos Estados hospedeiros. Diz ter acumulado investimentos de US$ 80 bilhões, mas seu valor de mercado, segundo critérios de Bolsas internacionais, é da ordem de um décimo disso.

O reconhecimento das dificuldades da privatização é puro realismo; a renúncia formal a essa possibilidade é uma imprudência, pois remove a ameaça concorrencial, que obrigaria a empresa a corrigir os seus abusos e se tornar eficiente. A pressão desesperada da Petrossauro, primeiro para preservar seu monopólio e, depois, para barrar qualquer possibilidade de privatização, é uma despudorada confissão de incompetência.

A segunda promessa a manutenção compulsória, em mãos da estatal, das áreas em que já tem trabalhos de exploração não faz sentido se desvinculada de compromissos formais de investimento. O que deve determinar a dimensão das áreas retidas pela empresa é sua capacidade de investir e não seu desejo de manter uma reserva de caça.

O racional seria exigir-se da Petrossauro programação realística de investimentos, com cronograma definido (um plano quadrienal, por exemplo); se descumpridas as metas, haveria um descarte de áreas para concessões a terceiros.

Manter-se pura e simplesmente o "status quo é um desaforo para os Estados hospedeiros, que querem mais investimentos e mais "royalties. Nas praxes internacionais, os contratos de concessão beneficiam as regiões produtoras de duas maneiras: as áreas de concessão são licitadas, gerando-se uma receita previamente à exploração, e esta resulta em pagamentos de "royalties entre três e sete vezes superiores aos pagos pela Petrossauro.

Uma das dificuldades que os petrossáurios encontram na privatização é que teriam de mudar sua cultura, da cultura do privilégio para a cultura da competição. São vários os privilégios da Petrossauro: além de não pagar taxas de exploração e "royalties adequados, está isenta do Imposto de Renda sobre pesquisa e lavra e dos impostos de importação sobre os respectivos equipamentos; o poder concedente não tem participação na produção e os dividendos pagos ao Tesouro são microscópicos (em média, menos de 1% ao ano).

Ao contrário do que dizem os estatólatras, a Petrossauro não alcançou nenhum dos dois objetivos que racionalmente poderiam visualizar-se. O primeiro seria a auto-suficiência. Até hoje, importamos 45% das necessidades e nossa dependência externa seria muito maior se não tivéssemos atravessado mais de um decênio de estagnação econômica.

O outro seria assegurarmos nosso abastecimento sem endividamento externo. Ora, nossa dívida externa é substancialmente um petrodéficit, pois, apesar de a bacia de Campos ter sido descoberta em 1974, somente dez anos depois, já premiados pela segunda crise do petróleo, começamos a produzir significativamente.

A terceira das promessas de Fernando Henrique preferência nas licitações em igualdade de condições é, provavelmente, inconstitucional. O regime previsto na Constituição é o da primazia da livre iniciativa. A ação do governo no terreno econômico, além das atividades de planejamento e regulação, é supletiva. Os monopólios são uma exceção ao princípio constitucional da livre iniciativa.

Abolido, por dispositivo constitucional, o monopólio da empresa, cessa o regime de exceção e prevalece o princípio geral da livre iniciativa. Logicamente, a conclusão seria precisamente no sentido oposto à promessa de Fernando Henrique: em igualdade de condições, a preferência deveria ser dada à iniciativa privada, sob a forma de empresas legalmente constituídas no país, concentrando-se o governo em suas funções clássicas.

Depois de várias boas notícias sobre flexibilização de monopólios, entramos numa semana de más notícias. Além da imprudente carta de Fernando Henrique, há uma declaração igualmente desavisada do ministro José Serra: quer que as privatizações no setor elétrico sejam totalmente feitas em moeda viva.

É uma visão microeconômica que poderá retardar o processo de privatização pela dificuldade de mobilização de capitais, quando a urgência é, no caso, importantíssima. As vantagens da privatização não se traduzem apenas no recebimento de caixa. Há vários benefícios indiretos: redução de dívidas, transferências de encargos ao setor privado, ativação de investimentos (com resultante receita fiscal), coleta do Imposto de Renda e outros tributos anteriormente não pagos pelas estatais deficitárias.

Se aceitas as chamadas ``moedas podres'', que outra coisa não são senão moeda boa apodrecida pela má gestão governamental, o deságio desses títulos é compensado pela oferta de preços mais altos nos leilões. Em moeda viva, os preços seriam bem mais baixos e a dívida pública reduzida em proporção menor.

Desconfiando, como desconfio, da capacidade governamental de gastar bem, acho até que seria preferível o pagamento total por meio do cancelamento de dívidas. Pelo menos teríamos certeza do saneamento do setor público. Desde 1990, quando foi passada a lei de desestatização do governo Collor, a contribuição da Eletrobrás para o Tesouro foi fortemente negativa.

Donde se conclui que, se as ações dessa holding tivessem sido distribuídas gratuitamente ao público, essa doação teria sido bom negócio para o Tesouro Nacional. Livrar-se-ia de prejuízos e passaria a cobrar Imposto de Renda das empresas privatizadas. Convença-se o ministro Serra de que o importante é a velocidade da privatização e não a esperteza da negociação. Um governo que consente em chamar seus próprios títulos de "moeda podre tem a moralidade de Macunaíma, o herói sem caráter da fábula de Mário de Andrade...

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Leia outras colunas de Roberto Campos para a Folha:

*'O liberalismo e a pobreza', de 1996


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