Folha de S. Paulo


Leia 'Chegando ao Limite', texto de 1999 do economista Roberto Campos

Cleo Velleda - 8.fev.99/Folhapress
ORG XMIT: 195001_0.tif O economista e ex-deputado pelo PPB, Roberto Campos, em debate na Folha de S.Paulo.
O economista e diplomata Roberto Campos (1917-2001) durante debate na Folha em 1999

O economista e diplomata Roberto Campos (1917-2001), que faria 100 anos nesta segunda-feira, foi colunista da Folha, onde manteve a seção "Lanterna na Popa" entre 1994 e 2000.

Leia abaixo texto publicado no jornal em 11 de novembro de 1999:

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Chegando ao Limite

Um espectro ronda o país _o espectro da desordem. É verdade que o nosso público, de tão passado a ferro em matéria de crises, costuma dar desconto. O Brasil é maior do que o buraco, e coisas pelo estilo. Infelizmente, qualquer observador capaz de filtrar o palavrório dos marqueteiros oficiais pode perceber hoje que os sinais de perigo estão ficando sérios. Persistente depreciação do Congresso, baixos índices de popularidade do presidente (no primeiro ano do seu segundo mandato!), aumento bestial da criminalidade, impressão de iminente falência múltipla dos órgãos do Estado, esvaziamento de valores e símbolos, falta de ânimo do povo, perda de referências, desgaste das opções de esperança. Em fala acadêmica, traços de anomia, atimia, acídia.

Não adianta culpar nem desculpar o governo atual. Que tem a sua parcela de responsabilidade, sem dúvida, mas não inventou os problemas. Encontrou-os. Por outro lado, assim como o real lhe deu a eleição de 94 e também a de 98 (quando o país, anestesiado pelo otimismo oficial, já estava começando a ser apanhado pelo "tsunami" financeiro internacional que, a partir do epicentro do Leste Asiático, foi levando de roldão as economias que estavam em perigo), as frustrações, exacerbadas pelos erros da política econômica, fazem-no agora alvo natural do rancor do público.

A herança de desordem dos gastos públicos recebida por Fernando Henrique seria quase inadmissível, qualquer que fosse o governo, ainda que não se houvesse agravado tanto o cenário externo. Não se trata, porém, do governo de FHC, que é uma figura lúcida, de boa qualidade intelectual e irretocável seriedade diante da coisa pública. Teria sido uma boa escolha eleitoral para a chefia do Estado em qualquer parte do mundo. Estado e governo são, no entanto, coisas diferentes que, no Brasil, historicamente tendem a atropelar-se de maneira intratável, constituindo o pior dos obstáculos ao desenvolvimento de uma sociedade. Os erros do governo atual têm decorrido muito mais da quase impossibilidade de controlar a "máquina" política e econômica que aí está do que propriamente de falhas pessoais do presidente.

Não há mais como adiarmos uma reforma política radical. No nosso regime presidencial, os traumatismos inerentes à rigidez, aos graves sobressaltos de qualquer transição eleitoral e ao incontrolável potencial de conflitos entre o Congresso e o governo já provocaram, desde o início da República, uma sucessão de crises institucionais seriíssimas. Estas foram seguidas de regimes de baixa legitimidade, oligárquicos ou autoritários, entremeados de breves períodos de precária legalidade, durante os quais enchentes de populismo ameaçavam aluir as comportas da ordem pública. Os ministros costumam ser ou meros favoritos ou comprados no varejo da máquina política. Um enredo que não variou muito nos últimos 110 anos.

A situação talvez tenha alguma parecença com a de 1930. Nesse ano houve uma revolução, seguida de década e meia de regime de exceção, interrompida por três anos de precária tentativa de democracia. Quando o mundo todo estava em depressão, 70% da população brasileira vivia no campo, e enquanto as economias industriais sofriam, o país, por espontânea substituição de importações, acabou crescendo a taxas surpreendentes. Hoje, o paradoxo é estarmos em recessão no meio de um mundo próspero. Se não forem mudadas as regras políticas, as próximas eleições gerais, em 2002, podem precipitar o país no caos populista, do qual não se sairá senão a um custo terrível.

Falta muito ao Brasil em termos de regime verdadeiramente democrático. Medidas provisórias (instrumento impróprio para um regime presidencialista, inventado no mais abagunçado dos parlamentarismos, a Itália, e adotado nas loucuras de 88, talvez porque os nossos juristas tivessem menos dificuldade em capiscar o italiano do que o inglês); voto obrigatório (constrangimento do eleitor, não praticado em nenhuma grande sociedade democrática); o peso do voto de cada cidadão variando conforme o estado da Federação e por aí afora. A coesão dos partidos torna-se ficção _basta pensar-se nas dezenas de mudanças de partido após as recentes eleições. E não é para menos. Em São Paulo ou no Rio, um deputado tem de competir em universos eleitorais de 70 e de 46 vagas, respectivamente. Como estranhar que cada candidato seja o primeiro natural adversário dos seus companheiros de partido, salvo dos que "arrastam votos" e geram sobras de legenda? Que responsabilidade política é possível esperar em tais condições? Conseguimos faze
r o oposto do presidencialismo federativo que nos serviu de modelo republicano, os Estados Unidos. Lá, os Estados e os municípios que se endividam têm de se virar sozinhos _aqui, a conta vai para a Viúva. Por outro lado, enquanto lá os Estados não podem impor obstáculos entre si ao comércio e à circulação de capitais, aqui vemos Estados tentando proibir, por exemplo, a exportação de matérias-primas para outros.

A reforma política, por urgentíssima que seja, porém, não é uma panacéia. Não há regime político algum capaz de satisfazer a todos igualmente. Até nas mais sólidas e estáveis democracias do mundo a Inglaterra, parlamentarista, e os Estados Unidos, presidencialista, ambas com voto distrital há sempre gente querendo mudar o sistema. Todos os sistemas têm defeitos. O voto distrital simples é usado na França, na Inglaterra (que está para realizar um referendo nacional a respeito), nos Estados Unidos, no Canadá e em outros. Formas modificadas, como o distrital misto, são usadas na Alemanha e em alguns mais. O voto puramente proporcional, usado em uns quantos, pode ser em listas abertas dos partidos ou fechadas ou ainda "transferível", de escolha livre (dentro do mesmo partido ou em vários), com ou sem exigência mínima de votos para o partido ter representação parlamentar (em geral, 3% a 5%). São inúmeras as combinações possíveis, e a mais apropriada sempre depende do contexto histórico, cultural e social específico.

Reforma política não se limita a essas múltiplas combinações. No caso brasileiro, contudo, a indicação é de cirurgia imediata, e a solução mais sensata, do ponto de vista da legitimidade e estabilidade, consiste no parlamentarismo baseado sobre o voto distrital misto (o que melhor combina as virtudes dos vários sistemas), complementado por uma legislação eleitoral responsável.

Três enormes vantagens de um regime parlamentar são:

(1) quem faz as leis é que tem de cumpri-las, o que limita a demagogia e a irresponsabilidade.

(2) os partidos passam a existir como aglomeradores eficientes das correntes políticas, o que dá mais legitimidade ao sistema.

(3) as mudanças de governo tornam-se mais fáceis e menos traumáticas, o que dá maior poder e segurança ao eleitorado.

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Leia outras colunas de Roberto Campos para a Folha:

*'O liberalismo e a pobreza', de 1996


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