Folha de S. Paulo


Especialistas discutem conceitos de 'verdade' e 'pós-verdade' no jornalismo

Eduardo Anizelli/Folhapress
O professor de jornalismo Eugênio Bucci em evento em 2016
O professor de jornalismo Eugênio Bucci em evento em 2016

A verificação dos fatos e dos discursos do poder, exercidos pela imprensa, pode representar uma barreira contra a chamada indústria da pós-verdade, que dissemina mentiras, embaralhando o debate público e, portanto, fragilizando uma das bases do projeto democrático.

Esse desafio do jornalismo profissional diante da recente proliferação de notícias falsas nos meios digitais foi tema do fórum "O Papel da Mídia Brasileira na Era da Pós-Verdade", promovido pela Associação Nacional de Editores de Revistas (ANER) na terça-feira (4/4) em São Paulo.

O encontro discutiu o significado de pós-verdade e suas implicações para o consumo de notícias e para as democracias.

De acordo com o dicionário Oxford, pós-verdade é um adjetivo definido como "relativo ou referente a circunstâncias nas quais os fatos objetivos são menos influentes na opinião pública do que as emoções e as crenças pessoais". O termo foi eleito "a palavra do ano" de 2016 por sua influência em eventos que surpreenderam o mundo como o referendo em que o Reino Unido definiu sua saída da União Europeia, conhecido como Brexit, e a eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA.

"O exercício do jornalismo de qualidade, nos parâmetros e nos cânones éticos da profissão, tende a produzir um ambiente de debate em que os fatos ficam mais acessíveis, o que pode desmontar a indústria da mentira e da pós-verdade", disse o jornalista e professor da Escola de Comunicação e Artes da USP Eugênio Bucci, que tratou do termo como "populismos de direita e de esquerda que têm em comum o desprezo pelos fatos e a gana de combater aqueles que verificam fatos e questionam a lógica do poder".

Bucci evocou a ideia de "verdade factual" contida na obra "Verdade e Política", da filósofa Hannah Arendt (1906-1975), como substância da política e elo que mantém a democracia inseparável da atividade da imprensa.

"O pano de fundo dos fatos nos dá elementos para que possamos manter uma base comum de diálogo a partir da qual podemos divergir. Se não houver essa âncora factual, nós deixamos para trás o projeto democrático e a própria política, e ingressamos no terreno do fanatismo."

Para Carlos Eduardo Lins e Silva, livre-docente em comunicação pela USP e ex-ombudsman e correspondente em Washington da Folha, foi o fenômeno global da polarização política que criou um "engajamento sem escrúpulos" na difusão de notícias falsas. "Vale tudo para prejudicar um inimigo ideológico", disse.

Ele avalia, no entanto, que nem a criminalização e a Justiça nem a regulação e o governo são caminhos para vencer o desafio.

Tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei 6.812/2017 que prevê detenção de 2 a 8 meses e pagamento de multa ao criminalizar quem "divulgar ou compartilhar, por qualquer meio, na rede mundial de computadores, informação falsa ou prejudicialmente incompleta em detrimento de pessoa física ou jurídica".

"Isso é um perigo porque quem vai definir o que é notícia falsa?", alerta Lins e Silva, lembrando que Donald Trump, por exemplo, tem classificado como mentirosos todos os veículos profissionais norte-americanos. "As leis sobre o abuso da liberdade de expressão que temos hoje já são suficientes", avalia.

Segundo ele, notícias falsas sempre existiram. "A novidade é a simplicidade e o baixo custo, a capacidade de proliferação rápida e com grande abrangência geográfica", disse, destacando ainda a formação de uma "indústria da pós-verdade nas mídias sociais que, ao povoarem com anúncios as mídias mais acessadas, premiam a mentira e a notícia falsa".

"A tendência é de que isso cresça. O desafio é enorme e a única saída é o profissionalismo, amparado na checagem de informações", disse, apontando que pesquisas realizadas nos EUA informam que 59% dos leitores só lêem as manchetes das notícias (verdadeiras ou falsas) e 25% dos leitores não conseguem distinguir notícias falsas das verdadeiras e, quando o fazem, ainda acham válida a propagação das informações mentirosas.

Já o filósofo e colunista da Folha Luiz Felipe Pondé credita o fenômeno a uma classe ressentida, abandonada e maltratada que encontra nas redes sociais uma "espécie de visibilidade para invisíveis e irrelevantes", onde se consome aquilo que diverte e que reforça sua própria visão de mundo.

O fórum teve ainda palestra de Francisco Leopoldo Carvalho de Mendonça Filho, da Secretaria Especial de Comunicação Social da Presidência da República, sobre reformas estruturais e desinformação, e um debate entre Marcelo Rech, presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Paulo Tonet, presidente da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), e Fábio Petrossi Gallo, presidente da ANER.


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